23/11/2022

FELIZ ANO NOVO PARA MINHA PÁTRIA EM TREVAS





Feliz ano, este ano, para ti, para todos
os homens  e  as trevas, Araucania amada.
Entre ti e minha existência há esta noite nova
que nos separa, e bosques e  rios e caminhos.
Porém até a ti, pequena pátria minha,
como um cavalo escuro meu coração galopa.
Entre por seus desertos de pura geografia,
passo pelos vales verdes onde a uva acumula
seus verdes álcoois, o mar de seus cachos.
Entro em tuas aldeias de jardim fechado,
brancas como camélias, no acre 
odor de tuas adegas, e penetro
como um madeiro a água dos rios que tremem
trepidando e cantando com lábios transbordados.

Recordo, nos caminhos, talvez neste tempo,
ou melhor no outono, sobre as casas deixam
as espigas douradas do milho secando,
e quantas vezes fui como um menino extasiado 
ao ver o ouro nos tetos dos pobres.

Te abraço, devo agora
retornar a meu lugar escondido. Te abraço
sem conhecer-te: dize-me quem és, reconheces
a minha voz no coro do que está nascendo?
Entre todas as coisas que te rodeiam, ouves
minha voz, não sentes como te cerca meu acento
emanado como água natural da terra?

Sou eu que abraço toda a superfície doce
a cintura florida de minha e te chamo
para que falemos quando se apague a alegria
e entregar-te esta hora como uma flor fechada.
Feliz ano-novo para minha pátria em trevas.
Vamos juntos, está o mundo coroado de trigo,
o alto céu corre deslizando e rompendo
suas altas pedras puras contra a noite; apenas
se encheu a nova taça como um minuto
que há de juntar-se ao rio do tempo que nos leva .
Este tempo, esta taça, esta terra são teus:
conquista-os e escuta como nasce a aurora.

Pablo Neruda
de Canto Geral
arte Van Gogh


17/11/2022

NO ALVORECER DO NOVO DIA

 

No alvorecer do novo, em crepúsculo ainda,
em densos bandos, de longínquos litorais,
levantarão os  abutres 
seu voo silencioso,
sempre em nome da ordem.

Bertolt Brecht
em Poemas e Canções 
Tradução Geir Campos
arte Toshio Ebine

25/10/2022

ALSTROMOERIA



 Neste mês de Janeiro a alstromoeria,
a sepultura flor, a submersa,
sai do seu esconderijo e sobe aos desertos.
E  amanheceu rosada a penedia.
Os meus olhos reconhecem
a sua marca triangular sobre a areia.
Então pergunto-me 
vendo
o dente pálido
duma pétala, o regaço
perfeito dos seus íntimos sinais,
como se engendrou debaixo da terra
Como surgiu, onde não havia senão pó,
rochas ou cinza, assim pura, incitante,
adornada, irrompendo na vida com sua formosura?
Como foi feito na vida com a sua formosura?
Como foi feito esse trabalho subterrâneo?
Quando se uniu a forma com o pólen?
Como foi que a escuridão
Chegou ao orvalho
e se elevou com  a terna labareda
da flor repentina
até que se teceram gota a gota,
fio por fio as áridas regiões
e pela luz rosada
passou o ar espargindo a fragrância 
como se ali tivesse nascido
de terra ressequida e solitária
fecundidade florida,

frescura por amor multiplicada?

Assim pensei Janeiro
olhando o árido ontem enquanto agora
tímida e enrugada cresce
a terna multidão da alstromoeria:
e onde pedra e deserto
estiveram 
passa o vento na sua nau sulcando
as ondas olorosas.

Pablo Neruda
de Plenos Poderes


25/11/2021

MAIS QUE SEI EU

 

Mas que sei eu das folhas no outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?

Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono

Nenhum súbito súbdito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha qualquer

 Mas eu que sei destas manhãs?
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha

Ruy Belo 
Transporte no Tempo
arte Serena Cacace

20/11/2021

RÉQUIEM PARA UMA TARDE COMUM DE MARÇO


 

Pobre rebanho que anda em silêncio para o matadouro
e nunca  teve pastor, nem ovelha negra.
Pobres de nós, pobre de mim espatifado aqui
sobre ilusões goradas e abortos de sonhos,
cinicamente capaz de sobreviver
a todos os suicídios.

25 de março de 1980.

Caio Fernando Abreu
de Poesias Nunca Publicidade de Caio F. Abreu.
arte Camille Pissaro


DA VERDADE

 













A terra
gira em torno do sol:
- eis uma verdade científica.

                 Bloqueada pela ignorância,
                 foi imposta pela evidência
                 desde que o homem firmou os pés no chão.

A vida humana 
se estrutura sobre uma base econômica:
- eis outra verdade científica.

                  Bloqueada pelo privilégio,
                  é combatida pelo interesse
                   que põe o homem de cabeça para baixo.

É que a primeira
só afeta os movimentos da natureza:
-pôde ser aceita sem prejuízo para ninguém.

Mas a segunda 
afeta os movimentos da burguesia:
- só será aceita com inverter-se a inversão.

Pedro Lyra
de Visão do Ser
arte Victor Nizovtsiv


O MOTIVO




Te amo?
Não sei.

Sei que quero estar contigo quando estou em paz;
quando estou em transe, também quero estar contigo.

(Se te quero na calma e na luta, deve ser porque te ame)

Quero estar contigo quando a chuva me congela desejos;
quando o sol me acende sonhos, também quero estar contigo.

( Se te quero no vazio e no pleno, deve ser porque te ame.)

Quero estar contigo quando sofro que a solidão começa a ferir,
quando a festa me oferece o mundo, também  quero estar contigo.

 ( Se te quero na angústia e no prazer, deve ser porque te ame.)

Quero estar contigo quando a manhã traz uma música de vida ;
quando a noite um silêncio de morte, também quero estar contigo.

( Se te quero na vida e na morte, deve ser porque te ame.)

Não sei. Não sei.

Mas, sobretudo, quero estar contigo quando quero estar comigo.
Como agora, e sempre, sempre, ainda, e mais, e mais e mais 

Pedro Lyra 
de Visão do Ser 
arte William Haeraets 

17/11/2021

CRIANÇA




Criança querida
Pinguinho de gente
Projeto de vida
Semente sagrada
Florzinha encantada
A desabrochar!
Sorrio ao ver-te
Contente, pulando,
Cantando, dançando,
Ensinando a amar!
Criança sapeca
Brincando com bola,
rolando carrinho,
jogando peteca.
Travessa criança
loirinha, morena,
mensagem serena
de fé e esperança!
Teu jeito inocente
encanta, anima,
enche de alegria
o coração da gente!
Que Deus te abençoe
criança de hoje,
criança de sempre
criança que chora,
que canta, que ri.
Tomara que os homens
se voltem um pouco,
tomara que os homens
se encontrem em ti!

Else Sant’Anna Brum
Créditos Academia Joinvilense de Letras
arte Maria Magdalena Oosthuizen

RESSURREIÇÃO

            


Ele esteve diante de Pilatos que o entregou
Foi traído por Judas que o vendeu,
Abandonado por Pedro que o negou.
Mas no Sinédrio, com toda a majestade
Professou sem temor a sua divindade:
– Filho de Deus eu sou!

Ele esteve na cruz, de espinhos coroado,
Depois de duramente flagelado,
Ferido pelos cravos em muda agonia.
Para a sede, vinagre foi-lhe oferecido
Os amigos tinham desaparecido
Só ficaram João e sua mãe Maria!

Depois que tudo consumado estava,
O véu do Templo do alto se rasgou.
Cumpriu-se a profecia. Nova era se abria.
A morte foi vencida. A pedra removida.
E naquela manhã gloriosa, o anjo anunciou:
– Ele não está aqui. Ele ressuscitou!

Aleluia! Diz hoje o povo redimido.
A cruz nos libertou. Cantemos sua glória.
O Pedro que negou, três vezes afirmou:
– Tu sabes que te amo, meu Senhor!
Em Cristo ressurreto há tríplice vitória:
Da vida, do perdão e do amor!

​Else Sant’Anna Brum
Créditos Academia Joinvilense de Letras
arte Michael Malm

GESTAÇÃO



No começo era o bem
a coletiva paz
o de-todos:
                  se não havia
                                       abundância
                   também não
                                        necessidade.

e
    este sendo, cabia
todomundo na superfície do planeta.

Mas - depois - vieram
o pecado
                                              com ele - o preconceito
a propriedade
                                                 com ela - a miséria
a família
                                               com ela - o egoísmo
a arma   
                                              com ela - a covardia
o comércio
                                                com ele - a roubalheira
o dinheiro
                                             com ele - a injustiça 
a lei
                                              com ela - o privilégio
a cidade
                                             com ela - a danação
o estado
                                                 com ele - a opressão
o país
                                            com ele a - solidão 
a igreja 
                                              com ela - a reação
a indústria 
                                                   com ela - a alienação
a máquina
                                                (cadê o amor?)

e
assim 
         se processou 
                                   a gloriosa gestação da espécie humana.

Pedro Lyra
de Visão do Ser
arte Josephine wall
         
                

16/11/2021

FEBRE




sopra um vento pelo peito do mareante – vento
cinzento capaz de apagar os gestos que restam e
de limpar os passos incertos pelas ruas do cais

vento
um vento que te sacode as veias os tendões
faz vibrar os músculos e a mastreação – como a árvore
que se desprende das entranhas do mar

corre
corre um vento pelas fissuras da pele – vento
de pó enferrujado abrindo feridas nos animais vivos
colados à memória onde
uma serpente mergulhou no sangue e
desata a fulgurar

sopra um vento pelo peito do mareante
desperta a florescência pálida do plâncton – varre
a noite e lava as mãos dos condenados à morte

corre um vento
vento de febre – sismo de orquídeas que acalma
quando acendes a luz e abres as asas
vibras e
levantas voo

Al Berto
arte Felix Mas
Créditos Quadrogiz blogspot

NATAL



Um anjo imaginado,
Um anjo diabético, atual,
Ergueu a mão e disse: — É noite de Natal,
Paz à imaginação!
E todo o ritual
Que antecede o milagre habitual
Perdeu a exaltação.

Em vez de excelsos hinos de confiança
No mistério divino,
E de mirra, e de incenso e ouro
Derramados
No presépio vazio,
Duas perguntas brancas, regeladas
Como a neve que cai,
E breve como o vento
Que entra por uma fresta, quizilento,
Redemoinha e sai:

À volta da lareira
Quantas almas se aquecem
Fraternalmente?
Quantas desejam que o Menino venha
Ouvir humanamente
O lancinante crepitar da lenha?

Miguel Torga
Arte Damião Martins
Créditos Quadrogiz blogspot

INDAGAÇÕES

 


De argila e de sangue
somos feitos. Não mais
que a imponderável ânsia
de ascender ao divino
transportando conosco
este fardo humano
de organismo imperfeito.

De suor e de lágrimas
nos tornamos. Quanto
esperamos saber
em nossa ignorância
no intuito de voar
à excelsa plenitude
do espírito supremo?

Quem nos formou? Quem
imaginou e fez
energia e matéria,
todo o Universo
que vemos e sabemos
e os demais mundos todos
que jamais saberemos?

Deixamos o que sabemos
— e o mais que desconhecemos —
aos que depois a terra
habitarem: esses homens
futuros que ignoramos
e mal podemos pressentir
pelo que hoje apresentamos.

Aonde vamos? Aonde
repousará nossa alma
a contínua indagação
que nos eleva além
de simples animais?

Em que páramos finais
existe nossa redenção?

Fernando Py
Arte Irina Kotova

15/11/2021

PRECE AO MAR

 


Se tu pudesses, mar, se tu pudesses
Levar-me contigo para onde vais,
Sem em tuas ondas me quisesses,
Eu iria pra não voltar jamais!
Penso que além de ti, na solidão,
Haverá refrigério para a alma,
E este meu triste e pobre coração
Terá um pouco de alegria e calma.
Porque talvez, além de ti, ó mar,
Não exista ninguém aqui da terra
Nem possibilidade de amar.
Leva-me, é o que te peço em minhas preces
Pois uma triste história a minha vida encerra.
Levar-me, ó mar amigo, se pudesses!

Else Brum Sant´Anna
créditos Zigzagandoeuvou blogspot
arte Abdullah Evindar


14/11/2021

CREPÚSCULO DE OUTONO

 


O crepúsculo cai manso como uma bênção.
Dir-se-á que o rio chora a prisão de seu leito…
As grandes mãos da sombra evangélicas pensam
As feridas que a vida abriu em cada peito.

O outono amarelece e despoja os lariços.
Um corvo passa e grasna, e deixa esparso no ar
O terror augural de encantos e feitiços.
As flores morrem. Toda a relva entra a murchar.

Os pinheiros porém viçam, e serão breve
Todo o verde que a vista espairecendo vejas,
Mais negros sobre a alvura inânime da neve,
Altos e espirituais como flechas de igrejas.

Um sino plange. A sua voz ritma o murmúrio
Do rio, e isso parece a voz da solidão.
E essa voz enche o vale… o horizonte purpúreo…
Consoladora como um divino perdão.

O sol fundiu a neve. A folhagem vermelha
Reponta. Apenas há, nos barrancos retortos,
Flocos, que a luz do poente extática semelha
A um rebanho infeliz de cordeirinhos mortos.

A sombra casa os sons numa grave harmonia.
E tamanha esperança e uma tão grande paz
Avultam do clarão que cinge a serrania,
Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás.


Manuel Bandeira
de “A cinza das horas”, 1917.