Suas cartas de amor, manda o bom senso
Queimá-las todas. Abro-as no regaço.
Enquanto as leio, sinto pelo espaço
O delicado, trescalante incenso,
O aroma invariável do seu lenço,
Do seu sorriso, do seu terno abraço.
Afinal sobre a laje do terraço,
Deita-as ao fogo, num pesar imenso.
Vejo o pranto rolar.É que isto, em suma,
Tudo resume. A lágrima caída
Brilha aos raios solares como a espuma
Do velho mar, ocultando a velha bruma;
E a cinza e sempre a mesma, enegrecida
Poeira de fogo extinto, extinta vida!
II
- Pintor, pinta-me um quadro bem tristonho,
Com esta cinza bem negra, bem retinta,
Extinta flama de outra flama extinta,
Resto remoto de um remoto sonho;
Que agora, à luz da lâmpada indistinta,
Com um pequeno pincel removo, ponho
Sobre a palheta e em tintas decomponho.
Vamos, pintor, esquece um pouco a tinta,
Contempla a noite.Não te impressione
A escuridão, bem sabes que ela ajuda
O mundo a ressonar. Pois que ressone.
E agora vamos, pinta-me desnuda,
Pobre mulher, eternamente insone,
Eternamente olhando a noite muda!
III
Se não podes dormir, se te aniquila
Um grande sofrimento, não vacila,
No cavalete a tela branca ensombra,
Pinta um salão ao gosto inglês.Na alfombra,
Junto à janela, plácida, tranquila,
Sobre um busto de mármore, perfila
A ave da noite, que apavora e assombra,
E espalha pelo chão a negra sombra
Do demônio, ou profeta, ou o quer que seja.
Mas o dia clareia.Nasce a aurora.
Este quadro sombrio descolora,
Se não queres que toda gente veja
Que hospedas o demônio, que negreja,
Como o pobre saudoso de Lenora.
Débora Leão
In Remoto Sonho
tela de Henri Joseph Constant Dutilleux
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