23/12/2008


Foto de miriam.faleiros

SOLENE MÚSICA DO ENTARDECER

ALLEGRO

Nuvens esgarçam-se; do céu em brasa
errante luz bruxuleia sobre vales ofuscados.
Pando com o vento quente procela
fujo a passo incansável
Atravessando uma vida nublada.
Ah, se por um instante
ao menos, entre mim e a luz eterna
uma propícia borrasca soprasse o cinzento nevoeiro!
Estrangeira é a terra que me cerca:
leva-me longe, arrancado da pátria,
de um lado para outro o poderoso vagalhão do destino.
Vamos, vento: corre com essas nuvens,
rasga esses véus
para que a luz me possa cair sobre os incertos atalhos!

ANDANTE

Consolador ainda
e sempre novo em resplendor de eterna criação
o mundo a meus olhos ri,
vive e cresce em mil formas respirantes,
adeja a borboleta ao vento e ao sol,
a andorinha veleja em glorioso azul,
estua o mar no litoral rochoso.
Ainda e sempre árvores e estrelas,
nuvens e pássaros são meus parentes próximos,
o rochedo me faz sinais de irmão,
amigável me chama o infinito mar.
Insensato me leva meu caminho
a uma perdida lonjura azul:
em parte alguma um sentido, nenhures meta segura.
Cada regato na mata, contudo,
cada mosca a zumbir, vem me falar de uma profunda lei,
uma sagrada ordem,
pela qual sobre mim também se estende a abóboda celeste,
pela qual sons secretos
como ao passar dos astros
no pulsar do meu coração também retinem.

ADÁGIO

Repõe o sonho o que o dia consome;
à noite, quando a vontade sucumbe,
afloram forças libertas
acompanhando divinos pressentimentos.
Murmuram bosque e rio, e através da alma esperta
um relâmpago cruza o céu de azul de noite.
Dentro e fora de mim
é o mesmo: somos um, o mundo e eu.
A nuvem flutua em meu coração,
sonha meu sonho o bosque,
contam-me a casa e a pereira
as esquecidas sagas de uma infância comum.
Em mim ressoam rios e ensombram-se barrancos,
são companheiras íntimas a lua e as estrelas pálidas.
E a benfeitora noite
que sobre mim se inclina com nuvens macias
tem o semblante de minha mãe,
e sorrindo me beija com amor inexaurível,
sonhadora balança como nos velhos tempos
a adorável cabeça, e seus cabelos
pelo mundo flutuam, e estremecem
em palidez inquieta os milhares de estrelas.

Hermann Hesse
In Andares

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