02/12/2008

AS GARÇAS SELVAGENS DO SAPUCAÍ (Saga de asas)




Novembro, estação das chuvas, e as garças já retornaram, para nidificação, àquelas árvores junto ao velho Rio Sapucaí. Centenas delas, diferentes tamanhos, cores, e espécies ( branca-grande, vaqueira ou boiadeira, socó-dorminhoco ou garça-cinzenta...). Algumas,como as brancas grandes, exibindo suas egretas, penachos especiais no dorso usados para o ritual de corte.
É a época da reprodução. No ninhal já se vêem as estruturas de gravetos e galhos secos, forradas de capim. Logo as fêmeas postarão os ovos verde-azulados, e os pais os chocarão e alimentarão os filhotes que vingarem.
Alvoroçadas com minha presença em seus domínios, emitem sons roucos, entrecortados, e brandem as poderosas asas quando de mim se afastam. Porém, jamais me atacam.
Quando pela primeira vez fotografei a colônia dessas aves , em meados de dezembro do ano anterior , os filhotes já estavam em seus ninhos, recém-chocados, de uma beleza quase grotesca, plumas escassas , o bico enorme, desproporcional à estatura do corpo. Aproximadamente um mês mais tarde, em minha segunda visita, já eram adolescentes, com plumagem mais definida, em pleno ensaio para a rara beleza que portariam quando adultas.
Em Abril deste ano , por ali passando, não mais as vi. No outono, após as águas de março, o nível das águas do Sapucaí abaixa assustadoramente, as várzeas da região do ninhal secam , dificultando para as garças encontrarem suas presas - plâncton, pequenos peixes e anfíbios - naquelas lagoas marginais. Em sua natureza migrante, as brancas grandes voam, então, para regiões de águas mais perenes, e em abundância, como nas proximidades do imenso lago de Furnas. E as exóticas vaqueiras, insetívoras, rumam aos pastos em busca dos insetos do gado, abrigando-se em outros pousios. E do milagre dos instintivos rituais da vida, daquele clamor de sons e asas, restarão, após partirem, ali junto ao rio, tão somente algumas penas, fezes branco-acinzentadas e o silêncio dos ninhos vazios.
Agora, mais uma vez , em novembro, ali estão elas, os filhotes do ano anterior já são aves absolutas e plenas que, dando continuidade ao ciclo natural, postarão e chocarão seus ovos, revitalizando o local com o grasnar coletivo, o vôo elegante, as delicadas poses e movimentos de bailarina.
Eu as aguardei durante longos meses para revisitá-las agora na estação das chuvas, meu coração como se atendesse a um chamado para registrar a renovação da vida em sua mais encantada alegria. Mas até quando as verei, agrupando-se, vindas algumas de longe, impulsionadas por um misterioso código biológico que lhes assegura um santuário de procriação precisamente naquele sítio?
Contemplando-as na tarde, consortes , amantes em plena, festiva cumplicidade, ciente de que logo partirão, em incansável saga de asas, para cuidar de outras conquistas, ocorrem-me à mente, então, uns versos do poeta irlandês, Yeats, referindo-se aos seus selvagens cisnes de Coole


"... Entre que juncos edificarão sua morada,
Junto a que lago, junto a que charco,
Deliciarão o olhar do homem quando um dia eu despertar
E descobrir que voando se foram?"


Fernando Campanella
foto por Fernando Campanella

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