17/12/2008

SALUTE, VELHO CAMPA




Francisco Campanella em uma de suas últimas fotos.


I

Salute, fraschi - brindava o velho Campanella à mesa do almoço, erguendo o habitual ‘Ave Maria’ junto da esposa, filhos, e alguns netos (minha mãe incluída) que ajudava a criar.
Imigrante no final do século dezenove da região de Casteluccio Superiori na Itália, desembarcou no Rio de Janeiro aos 27 anos de idade. Em seu passaporte, a especificação “artista” aludia a seu ofício , um ourives de primeira , entre os pioneiros no sul de Minas Gerais, onde se estabeleceu e viveu até o último de seus dias. Um de seus maiores orgulhos era o de ter criado e executado um crucifixo em ouro, encomenda de um certo monsenhor da paróquia de Pouso Alegre, cidade onde fixou residência após passagens por Águas Virtuosas, hoje Lambari, e Itajubá, também em MG.
Francesco Campanella adotou esta região de Minas para acumular e cultivar o que seria seu mais valioso tesouro : sua família. Homem severo, de um rigoroso senso moral, senhor da última palavra no quesito educação de filhos e netos, costumava dizer mais tarde, as netas então casadas, que sua dureza era só uma casca , em seu ‘miolo batia um coração carcamano de argila’ .
Além de ourives, ou um autor de jóias, mais especificamente, o talentoso Campanella consertava também relógios, e, depois de um certo tempo, já firmado na profissão, abriu uma barbearia , um bar e uma bicicletaria para seus filhos. Seu negócio tornou-se então um aglomerado de atividades em família onde nas folhas de papel timbrado de seu estabelecimento lia-se:

BIJOUTERIA , CONFEITARIA, BARBEARIA E BILHARES. GARAGE DE BICYCLETAS. OFICINA DE CONSERTOS DE JÓIAS E RELÓGIOS. FRANCISCO CAMPANELLA. PRAÇA DA CATHEDRAL. POUSO ALEGRE – MINAS.

Ganhou razoável dinheiro com seu comércio, gastou também boa soma em sua preocupação com uma mesa farta nas refeições, regadas a um bom azeite de oliva e vinho. Acumulou uma boa poupança no antigo Banco da Lavoura com sede no Rio de Janeiro. E mantinha um controle minucioso de tudo que guardava em cadernetas que trancafiava na gaveta de sua escrivaninha. Por ocasião da segunda guerra mundial, toda aquela reserva foi perdida devido a um terrível incidente ocorrido em sua residência. Naquela época, fanáticos contra os regimes políticos de Hitler e Mussolini invadiam e depredavam as casas de imigrantes alemães e italianos que residiam nas cidades brasileiras. Meu bisavô e sua família não escaparam. Sua residência e seu comércio foram pichados com insultos como ‘Quinta Coluna’, e depredados por uma multidão em fúria. Meu bisavô, devido à surpresa do ataque, teve que recuar para os fundos do quintal de sua casa, levando os netos e a esposa e protegendo -os como um deus de mil braços, mil galhos acobertando seus pássaros . Antes que o pior acontecesse , a turba foi contida. Mas Campanella perdeu os comprovantes e todo o controle que tinha do dinheiro poupado, conseqüência da destruição de seus móveis. E nunca mais, como tantos outros imigrantes , recuperou a quantia depositada. Porém, seu verdadeiro tesouro estava a salvo.
O amor sem limites para com a família também o levaram a manter um tipo de registro onde , junto a contas, despesas e vendas do bar, anotava o desenvolvimento físico das netas. Uma dessas notas dizia : “Em 9 de maio de 1939, Virgínia pesa 19 kgs e 600 gr., Margarida 17 kg e Terezinha 14 e 800 gr.” Campanella acompanhava zelosamente o crescimento de seus frutos no Brasil.

II

Os fregueses dos estabelecimentos daquele negócio em família referiam-se ao meu bisavô por ‘Campanella velho’, para uma melhor identificação, visto que os filhos também eram conhecidos pelo seu sobrenome.
Das memórias dos netos, duas unanimidades : a severidade do patriarca, como já mencionado, e os braços estendendo-se a toda família, agregando –a, ampliando sua residência,desdobrando-a em apêndices para atender as necessidades dos filhos.
Havia o seu lado irreverente, bem humorado, também. Gostava de sentar-se, já aposentado, à mesa de seu bar, que um filho então administrava, para jogar conversa fora com os fregueses. E quando o recinto se encontrava vazio, apenas alguns bisnetos à sua volta, Campanella disparava sua metralhadora: eram um erguer de uma perna, um sonoro ‘pum’ e uma redonda gargalhada. Seu lado trágico vinha de um remorso que teimava em carregar consigo pelo fato de haver dito, certa feita, que preferiria ter um filho morto a vê-lo em vício de algum jogo. Dos três filhos homens que teve, coincidência irônica, o filho mais boêmio, jogador exímio, morreu intoxicado em tenra idade. Campanella nunca entrou em bons termos com esta bênção às avessas, levou a dor até o resto de seus dias.
De minha mãe, ouvi o relato da ajuda de seu avô, levando-os, a ela e meu pai, para morar em sua casa nos primeiros anos de casados, em vista do baixo salário do genro-neto na época. Foi estipulado um aluguel simbólico o que causou um certo ressentimento no casal. Após uns três anos lá morando, meu pai conseguiu se arranjar melhor na vida e pôde alugar a própria casa. Campanella chamou-os em, então, ao seu quarto e retirou de uma gaveta um envelope como uma quantia em dinheiro referente ao ‘aluguel’ pago durante aqueles anos e o entregou a eles para começarem uma vida independente com relativo conforto. Um homem previdente, sim, sob uma aparência de rabugice e mesquinharia.
Nos bisnetos homens ficou a memória do tempo em que, moleques ainda, iam até a horta do velho para roubar seus cobiçados, enormes tomates o que tornava Campanella possesso. Os legumes deveriam ser colhidos somente por ele, no tempo que determinasse, e por ele distribuídos entre a família. Após a constatação do furto, meu bisavô media com um barbante os comprimentos das marcas dos pés nos canteiros e saía medindo todos os pés dos bisnetos em busca do autor do delito para uma boa repreensão.
À sua única filha, devotou um amor e zelo extremados, interferindo na escolha de seus namorados, exercendo um poder absoluto de veto, e por fim afastando todos os pretendentes da para sempre ‘moça’, da eterna filha de Maria.
O cultivo de parreiras e a criação de pombos para a alimentação da família foram também outras atividades de Campanella. As casinhas de madeira das aves, construídas por ele próprio com extrema dedicação e beleza, eram mais um fruto de seus múltiplos talentos.
Da Itália, trouxe o gosto pelo vinho e pela macarronada, do Brasil adotou a banana, fruta que conquistou seu paladar e preferência.


III

 

Além do caráter severo, reto e amoroso , os lados intelectual-artístico e espiritual de meu bisavô o tornaram alguém especial para mim. Representante consular da Itália em Pouso Alegre , contribuía com artigos para o ‘Fanfulla’ , jornal de imigrantes italianos sediado em São Paulo , que circulou entre os séculos XIX e XX. Ele recebeu daquele periódico um simpático cartão de reconhecimento pelos serviços prestados:

Tessera di Riconoscimento del Sig Francesco Campanella nella sua qualità di corrispondente de Pouso Alegre. S.Paulo, 16 Genario 1919. Il Direttore..........”
Em uma curta nota de um jornal local, recortada por meu avô, e colada em seu diário de miscelâneas, lia-se:

“No dia 11 do corrente, data natalícia do Rei da Itália, o sr. Francisco Campanella, representante consular daquela Nação, nesta cidade, fez hastear em frente à sua residência, as bandeiras do Brasil e da Itália; felicitou a colônia italiana domiciliada neste município e às auctoridades consulares; distribuiu boletins, saudando a passagem dessa data e solicitou um óbulo para as famílias dos que luctam em defesa da Pátria....”

O campanella velho era um homem que honrava duas pátrias. Imigrou da Itália, especulam as românticos , para esquecer uma paixão proibida por seus pais. Escolheu o Brasil porque aqui residia já há alguns anos sua irmã, Filomena Campanella, mãe de Pascoal Carlos Magno, que grande importância teria mais tarde nos meios cultural e diplomático em nosso país, criador do teatro do estudante no Rio de Janeiro . Seu domínio da gramática da língua portuguesa era tamanho que pessoas da cidade a ele procuravam para aulas para exames em concursos, colégios, etc.
Como designer e executor de jóias, Campanella deu vazão à beleza que se escondia em sua alma de artista. Uma de suas criações, um broche em ouro, presenteado à filha, trazia um pequeno tronco chanfrado, a casca trabalhada em alto relevo, e uma folha com um pequeno rubi no centro à guisa de flor.
Quanto ao seu lado espiritual , era devoto fervoroso de Nossa Senhora do Carmo, conservando um antigo estandarte italiano da Virgem em sua casa. Uma neta foi batizada Maria do Carmo, em homenagem à sua devoção E, inspirado pela santa, escreveu alguns poemas-oração em sua língua materna , ora louvando-a, ora rogando auxílio em alguns períodos de enfermidade em sua longa existência. Este é um trecho de um daqueles poemas, escrito em 1948, dedicado à sua filha:

All’amata mia Rosa – buona, umile e premurosa – ch’é figlia di Maria, offro di cuore questa mia

Preghiera
Ave, Regina pura,
Dalla natività,
La luce tua sicura
Penar non mi fará....”
(“À minha amada Rosa – boa, humilde e prendada – que é filha de Maria, ofereço de coração esta minha Oração - Ave, Rainha pura,/ Da natividade,/ a tua luz segura / sofrer não me fará ")

Porém, Campanella não era assíduo frequentador de igrejas. Na realidade, até mesmo criticava, junto à família, certos expoentes da sociedade local que se esmeravam em carregar o pálio de Corpus Christi, ou algum andor de santos em procissões. Pedaço de salame – costumava dizer , referindo-se a alguém em particular que se apoiava na imagem e em convenções religiosas para se auto-promover . Sua religiosidade era mais um culto interior, uma espiritualidade que operava no silêncio, nas jóias que desenhava, nos poemas que escrevia , em seu caráter firme, no amor à prole e a suas duas pátrias. De certa religiosidade também eram seus hábitos de beber uma taça de vinho ao almoço e levantar-se às cinco e trinta da manhã para cuidar dos pombos, de suas parreiras e de seus belos tomates na horta.
O conhecimento de meu bisavô veio-me de relatos de seus descendentes que com ele conviveram, e de fragmentos de seu irregular diário. Duas fotos, principalmente, me revelam a ternura , uma espécie de sacerdócio daquele homem. Em uma , mais antiga, tirada quando observava, junto de outras pessoas, a enchentes do rio de sua cidade, o vejo de costas, com chapéu e terno pretos, habitual indumentária de seus passeios, e os braços, sempre os braços, nos ombros de duas netas ainda meninas . Em outra fotografia , vejo-o , já bem idoso, com uma boina de lã, um cigarro de palha na boca, subindo uma escada em sua horta. Antigos e singelos instantâneos em preto-e-branco que me estendem raízes na alma.
Das memórias da família , permanece também aquela imagem do saudoso avô que sempre ia à estação de trem, ou de antigas jardineiras, esperar um jovem neto, fotógrafo em São Paulo , para abraçá-lo e carregar suas malas.
Talvez a mais remota lembrança que trago seja a já do final de sua agonia de 10 meses com um tumor em sua língua que lhe causou dores excruciantes , impossibilitando-lhe a comunicação oral , obrigando-o a expressar-se apenas através de bilhetes. Em uma longa fila, parentes aguardavam, para entrar em seu quarto, individualmente, a seu pedido, a fim de prestar as tristes despedidas ao patriarca.
Lembro-me, também , de suas roupas sendo incineradas, hábito dos antigos, após o funeral
Contam-me que o velho Campanella, mesmo do céu , continuou velando pela família, tendo vindo buscar um filho que faleceu seis anos mais tarde. No exato momento em que meu avô, após uma longa agonia com um enfisema pulmonar, desencarnou a antiga cadeira de balanço do Campanella velho, agora vazia, ao seu lado, moveu-se. Viera o bom pai cumprir um pacto que há anos atrás haviam feito, ele e o filho querido: quem primeiro morresse viria buscar o outro na hora de seu desenlace. Honrou, meu bisavô, como sempre, a palavra firme de um carcamano.

“Salute, Campanella, nel cielo, acanto alla tua Madonna.”

“Saúde, Campanella, no céu,
ao lado de tua Madona .
Um brinde com o velho
e bom ‘Ave Maria’
ao teu caráter,
tuas belezas douradas
e teu coração de argila.”



( F. Campanella, 20 de janeiro de 2007).

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