02/01/2010


1890 by Vincent Van Gogh

NO LIMIAR que não é meu
Sento-me e deixo o irreflectido olhar
Encher-se, sem eu ver, de campo e céu,
Se é tarde ou cedo, deixo de notar.
Nada me diz de si qualquer cousa que eu
Possa gozar.

Pelos campos sem fim
Sinto correr, porque na face o sinto,
Um vago vento, estranho todo a mim.
Não sei se penso, ou em que dor consinto
Que seja minha ou desespero sem ter fim,
Ou se minto.

Na inútil hora
Eu, mais inútil que ela, sem sentir
Fito com um olhar que já nem chora
A Dor ou desdém, dolo ou infiel sorrir,
O absurdo céu onde nenhuma cousa mora
Para eu fruir.

Apenas, vaga
Não uma esp'rança, mas uma saudade
Do tempo em, que a esperança, como vaga,
Dava na praia da minha ansiedade,
Me toma e um surdo marulhar meu ser alaga
De vacuidade.

Mas acordo e com vão
Olhar ainda, mas já diferente,
Por 'star ausente dele o coração,
E eu outra vez, nem mesmo descontente,
Fito o céu calmo, o campo, a alegre solidão
Inconsciente.

Nada, só o dia -
Se é tarde ou cedo continuo a errar - ,
Alheio a mim, a tudo dá a alegria
De não ter coração com que agitar
O corpo. E, quando vier a noite, tudo esfria
Mas sem chorar.

Isto e eu comigo
Posto no eterno aquém das cousas calmas
Que a vida externa mostra ao céu amigo -
Isto só e não ter cração abrigo
Nem o sol as almas.

Fernando Pessoa
In Obra Poética/Novas Poesias Inéditas

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