07/02/2010



by Kim Anderson

HISTÓRIA MAL CONTADA

Uma menina de mais ou menos dez anos,perguntava à contadora de histórias:“o que era ser humano?O que era ser gente?” A jovem contadora,devidamente fantasiada de mosquito, naquele momento esqueceu o roteiro da história que vinha contando, quando se viu interpelada, atropelada, pela curiosidade e pela pertinência daquela pergunta.Ela então,fez de conta que não ouviu, jogou os cabelos amarelos para trás, mas já não conseguia mais achar o fio da meada do que vinha contando ,as outras crianças fazendo coro à pergunta primeira. A contadora então, tirou a peruca, as asas de papel machê, as botas de alumínio, o ferrão de cartolina,desfez-se da voz aguda, limpou a lágrima colorida que lhe enfeitava a face, devolveu ao lábio, o rosa morno e natural, desfazendo-se do batom, e prostrou-se na cadeira, onde naquela hora, mais do que nunca, era o centro das atenções.
Todos os grandes olhos pararam sobre ela. Os ouvidos atentos e interessados esperaram a resposta que não vinha, “ O que é ser humano? O que é ser humano? O que é ser humano?” – a solidão fazia eco.Tentando argumentar, falou “Gente, de repente me vejo em frente a uma metáfora! E é tudo tão simples” Percebendo o silêncio, o aumentou com sua mudez. E entre tantos olhares, a revelá-la, se destacavam os olhos da menina.
Na sala abafada daquela primavera, a contadora buscava uma resposta inteligente que satisfizesse a compreensão das crianças, e a própria.Foram poucos minutos, talvez nem isso, em que passou a imaginar algo convincente .Lembrou da sua própria curiosidade numa mala. Visualizou homens de chumbo. Reportou notícias que davam conta da aceitação e do diálogo.Tirou da memória a intolerância, o racismo, o preconceito,a fraternidade.Desfrutou de uma solidão sórdida ao saber que dela sairia uma resposta que permaneceria para sempre, e essa sensação a cada segundo que passava, cosia mais fio em sua boca.Naquele silêncio, acometia-se de vontades mais úteis que uma resposta concreta.Imaginou-se correndo, fugindo pelos armários, desaparecendo num passe de mágica.Mas sabia ela que histórias desse tipo só eram verossímeis, e interessantes, nas fábulas. A vida real exigia dela nenhuma contradição,mas um fato.Também sabia que aquelas crianças não eram as do tipo que acreditavam em monstros, nem em cegonhas.Eram vitimadas pela realidade.Pelo sonho transmutado lógico.Pela velocidade.As grandes navegações a elas pertinentes, hoje eram frutos da Internet. E que esta era uma criação humana,desenvolvida para trazer o real, à visibilidade.Cansada de esperar, a menina levantou.De forma categórica tomou posse da peruca, vestiu as asas do mosquito, pintou os lábios de vermelho,botou dois dedos nos olhos para verter uma lágrima, e pediu à contadora silêncio, porque ela iria terminar a história.Antes disso, proclamou:
“esquenta não,fessora.Minha mãe sempre diz em casa, que ser humano mesmo, o de verdade,é ser assim igual a senhora! É não ficar inventando coisas quando a gente não sabe a resposta.”

by Jornal A Notícia de 05/02/2010
– escrito por M.De Silva e Silva

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