03/07/2010

NÃO SOMENTE O FOGO






Ah, sim, recordo,
ai teus olhos fechados
como cheios por dentro de luz negra,
todo teu corpo como mão aberta,
como um cacho de lua todo branco,
e o êxtase,
quando nos mata um raio,
quando um punhal nos fere nas raízes
e nos parte uma luz a cabeleira,
e quando
vamos de novo
retornando à vida,
como se nós saíssemos do oceano,
como se do naufrágio
voltássemos feridos
por entre as pedras e as vermelhas algas.

Há, porém,
outras lembranças,
não só as flores do incêndio,
também pequenos brotos
que de pronto aparecem
quando viajo nos trens
ou vou nas ruas.

Te vejo
lavando os meus lenços,
pendurando na janela
minhas meias furadas,
tua figura em que todo,
todo o prazer como uma chamarada
caiu sem destruir-te,
de novo

Mulher
 de cada dia,
de novo ser humano,
humildemente humano,
soberbamente pobre,
como precisas ser para que sejas
não a rápida rosa
que a cinza do amor desfaz,
porém a vida  inteira,
a vida toda com sabão e agulhas,
com o cheiro que gosto
do fogão que talvez nem tenhamos
e em que tua mão, entre as batatas fritas,
e tua boca cantando no inverno
enquanto chega o assado
seriam para mim a permanência
da felicidade sobre a terra.

Ai, vida minha,
não apenas o fogo entre nós arde,
mas toda, toda a vida,
a simples história,
o simples amor
de uma mulher e um homem
parecidos a todos.

Pablo Neruda
in Os Versos do Capitão
tela Suzanne in the Garden by Otto Stark


  


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