26/09/2010

VIDA (SEM ESQUECER A MORTE DE CADA DIA)





Escoam-se
areias na ampulheta
pranto
riso quase sereno.
Um destino ressoa
alada música
Appassionata.

É preciso tempo
o vagar dos crepúsculos
o começo
a promessa
o findar das estações
um olhar calmo sobre a vida
formas
contornam sensações
o céu infinito
explode cósmica
ternura.
Nada indiferente
sob a lua seus enigmas -
naufrágio das coisas
no azul.
Vivos e mortos
perambulam nas estradas
um sorriso nos lábios.
O que dizem
no silêncio
agora pleno
da alma?
Appassionata.

O gesto preserva a
emoção e o brusco
perpassar de folhas mortas.
Gemem pássaros noturnos
fiéis da madrugada
até que o horizonte desperte
em sua luz dourada.

Dedos da memória
afagam e são cruéis
tudo ressurge e se transfigura
no que poderia ser
se a chuva desabasse.
Só os relâmpagos
ao longe
de raios mudos.
A noite se expandia
se expande
ou tudo invadirá
com seus negros andrajos?
Olho sem ver
a paisagem
árvores dobradas pelo vento
ouço uma voz distante
não sei o que diz.
Apenas um manto me aquece
na noite gélida
mas pulsa o coração
da trêmula
Appassionata.

É preciso desdobrar
asas de amor conhecimento
liberar o tato
de todas as coisas
que esperam.
Pois o eco fugiria
das palavras vãs
sem pólen
os pássaros voltariam
aos ninhos de sombra
se teu coração
recuasse
e os cabelos
não soltasses
Appassionata.

A nudez do sono
frêmitos do vento
um perfil vizinho
jamais decifrado
carícias da alma
aquecendo o corpo
o poema lembrado
na neblina do outrora
os lábios unidos
no mais leve dos beijos
a flama e o desejo
a carne fremente
Appassionata.

O tempo findando
e agora tão próximos
corpo e alma
num limiar
agônico.
Silêncio esvaecido
de uma vida inteira
de busca
e o achado se perdendo
na mais fria madrugada
mas o grito irrompendo
tudo resume
Appassionata.

Vida longa
atenta aos sinais
rente aos vestígios de deuses forasteiros
é preciso
ser viva e morta
rolar nos gramados
amar as flores
nada aprisionar
retendo na avareza.
Amar em silêncio
com a maior leveza
sem pedir em troca o amor.
É preciso ter um corpo
é preciso ter alma
Appassionata.

Dora Ferreira da Silva
In Rascunho - Jornal da Literatura Brasileira
foto de ours polaire valloire no Flickr

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