19/12/2010

ARTE POÉTICA


















Entre sombra e espaço, entre guarnições e donzelas
dotado de coração singular e sonhos funestos,
precipitadamente pálido, emudecido de cara
e com luto de viúvo furioso por todo dia de vida,
ai, para cada água invisível que bebo sonolentamente
e de todo som que acolho tremendo,
tenha a mesma sede ausente e a mesma febre fria,
um ouvido que nasce, uma angústia indireta,
como se chegassem ladrões ou fantasmas,
e numa casca de extensão fixa e profunda,
como um camareiro humilhado, como um sino um pouco rouco,
como um espelho velho, como um odor de casa abandonada
na qual os moradores chegam à noite perdidamente embriagados,
e há um cheiro de roupa atirada ao chão, e uma ausência de flores
-  possivelmente de outro modo ainda menos melancólico  -
porém, na verdade, de súbito , o vento que açoita o meu peito,
as noites de substâncias infinita caídas no meu quarto,
o ruído de um dia que arde com sacrifício
me pedem o profético que existe em mim, com melancolia,
e uma pancada de objetos que chamam sem ser respondidos
existe, em um movimento sem trégua, e um nome confuso.

Pablo Neruda
In Residência na Terra I
foto de PatrickSmithPhotography

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