28/12/2010

INTERPRETAÇÃO DE DEZEMBRO
























É talvez o menino
suspenso na memória.
Duas velas acesas
no fundo do quarto.
E o rosto judaico
na estampa, talvez.

O cheiro do fogão
vário a cada panela.
São pés caminhando
na neve, no sertão
ou na imaginação.

A boneca partida
antes de brincada,
também uma roda
rodando no jardim,
e o trem de ferro
passado sobre mim
tão leve: não me esmaga,
antes me recorda.

É a carta escrita
com letras difíceis,
posta no correio
sem selos e censura.
A janela aberta
onde se debruçam
olhos caminhantes,
olhos que te pedem
e não sabes dar.

O velho dormindo
na cadeira imprópria.
O jornal rasgado.
O cão farejando.
A barba andando.
O vento soprando.
E o relógio inerte.

O cântico de missa
mais  do que abafado,
numa rua branca
o vestido branco
revoando ao frio

O doce escondido,
o livro proibido,
o banho frustrado,
o sonho do baile
sobre chão de água
ou aquela viagem
ao sem-fim do tempo
lá onde não chega
a lei dos mais velhos.

É o isolamento
entre às castanhas,
a zona de pasmo
na bola de som,
a mancha de vinho
na toalha bêbeda,
desgosto de quinhentas
bocas engolindo
falsos caramelos
ainda orvalhados
do pranto das ruas.

A cabana oca
na terra sem música.
O silêncio interessado
no país das formigas.
Sono de lagartos
que não ouvem  o sino.
Conversa de peixes
sobre coisas líquidas.
São casos de aranha
em luta com mosquitos.
Manchas na madeira
cortada e apodrecida.

Usura da pedra
em lento solilóquio.
A mina de mica
e esse caramujo.
A noite natural
e não encantada.
Algo irredutível
ao sopro das lendas
mas incorporado
ao coração do mito.

É o menino em nós
ou fora de nós
recolhendo o mito.

Carlos Drummond de Andrade
In A Rosa do Povo
tela de Lavinia Hamer

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