02/11/2011

A GUARDIÃ DE REBANHOS


 
IV

 
Anjos sofrem com os desatinos
do amor
e os grandes mestres exercem
sobre os discípulos a grande tirania.

Mas, as decisões do espírito
e da vontade transcedem as circunstâncias.

E sou plebéia e rainha,
- quinhão do diabo e dos homens.

Sou eu a vida
como um cavalo,
unimo-nos,
depois de nos haver adestrado
com perfeição.

A cada um, os gestos - os mais secretos.
O meu está contido na beleza
tão difícil de definir, mesmo diante
das evidências e dos olhos.

E sou negra
invernal, silenciosa.
E tu rosa calada no canto do jardim.

Sou lírio do brejo de cheiro
forte e noturno.
E tu o que se envolve no coração
se avoluma e chora
quando a alegria não cabe na garganta.

Tenho lábios de coral
e cheiro de flor de macieira.
Mas tenho também meu corpo
deteriorado.
pela marca da servidão
cuja origem nenhum deus modelou.

Sou pertubável e frágil sob os ritos
singulares e a intransigência de Deus.
E tu, uva de vindimas,
tão bela que justifica antecipadamente
a loucura.

Adquiri o esplendor do meio-dia
quanto todas as coisas estão
banhadas de uma atmosfera dourada.
Mas carrego também,
a lentidão das noites de insônia e
estrias
tão profundas no corpo da alma.

Tentei as variações transformando
o ídolo em fantasma.
Nelas, encontro tudo, até o eterno,
a magia capaz de evocar uma face perdida
num abandono de flor, o sal e a mirra
e a sensata loucura dos sonhos.

E ainda plebéia e ainda rainha,
em meu condão de estranha embriaguez
mergulhada gravemente
em meus sonhos desgraçadamente belos.

Eulália Maria Radtke
In Lavra Lírica 

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