11/03/2012

DOCE MILAGRE



O dia chora. Agonizo
Com ele meu doce amor.
Nem a sombra dum sorriso,
Na natureza diviso,
A dar-lhe vida e frescor!

A triste bruma, pesada,
Parece, detrás da serra
Fina renda, esfarrapada,
De Malines, desdobrada
Em mil voltas pela terra! 

(A chuva parece um réu.
Bate a chuva nas vidraças.)

As avezitas, coitadas,
,Squeceram hoje o cantar.
As flores pendem, fanadas
Nas finas hastes, cansadas
De tanto e tanto chorar...

O dia parece um réu.
Bate a chuva nas vidraças.
É tudo um imenso véu.
Nem a terra nem o céu
Se distingue. Mas tu passas...

... E o sol doirado aparece.
O dia é uma gargalhada.
A natureza endoidece
A cantar. Tudo enternece
A minh'alma angustiada!

Rasgam-se todos os véus
As flores abrem, sorrindo.
Pois se eu vejo os olhos teus
A fitarem-se nos meus,
Não há de tudo ser lindo?!

Se eles são prodigiosos
Esses teus olhos suaves!
Basta fitá-los, mimosos,
Em dias assim chuvosos,
Para ouvir cantar as aves!

A natureza zangada,
Não quer os dias risonhos?...
Tu passas...e uma alvorada
Pra mim abre perfumada,
Enche-me o peito de sonhos!

Florbela Espanca
In O Livro D'Ele
 tela Juan Fortuny

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