O vento da noite
soprando as cortinas
ele embalado por um
cabernet sauvignon
escreve para ela
mesmo sabendo que se perderá
a carta
logo que a lançar no tempo
mesmo assim
escreve
porque não importa
que não chegue
porque só importa que ele
escreva
escreva escreva escreva
para decantar um pouco
não a alma do vinho
mas a sua própria
que
embora em corpo antigo
não se suaviza
e ainda esculpe em nuvens
traça caminhos na espuma
como se nada estivesse
morto.
Porque na verdade
não está
nada está morto.
por isso ele escreve
porque só importa
que ele escreva
por causa do que em si
arde
ainda que num corpo
cálido apenas como
cinzas.
Por isso escreve
sabendo que
nada podem as palavras
(essa vela rota lançada
do tempo)
porque tudo referve ainda
a muito mais que os graus
do vinho
por isso escreve
como se rezasse a si mesmo
numa era extinta
porque não é a ela
é a si mesmo que escreve
(porque nele é que ela habita
a luminosa)
frases como cilícios
flagelos
escreve escreve escreve
porque os sinos não param
de dobrar
por ele
e a memória se contorce
e assim é
e não de outro modo
ele então rasgará as folhas escritas
e recomeçará
incapaz de uma pausa
mesmo
sem caneta sangrando
sobre o papel
escreverá
acordado ou dormindo
lançando a vela rota
tão longe como o que não foi
não chegou a ser
inflando
essas tramas fulgurantes
mesmo sabendo que são
indiferentes aos deuses
como cortinas sopradas
pelo vento da noite.
Ruy Espinheira Filho
In Sob o Céu de Samarcanda
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