O riso de ontem não é o riso de hoje, um esgar
os separa, um tormento, um vazio, uma cicatriz de sal,
a pálpebra caída da duradoura, persistente insónia.
O riso de ontem era um festim sereno,
um cais iluminado, uma varanda virada ao sul
celebrando a mágica tranquilidade das tardes.
E eu dizia: filho, o desenho é perfeito
quando é capaz de decorar o sonho, de contornar
a sombra até ser luz; mas eu não sei desenhar.
A tremura da mão fere o fulgor do traço e eu
não quero desenhar. Pega tu nas tintas,
nos lápis, nos pincéis e serve-te deles
até não poderes mais, até não saberes mais,
mas saberás sempre que o desenho, a página, o acrílico
têm uma sapiência mansa e horizontal
uma loucura cavalgando o fragor das ondas.
Eu já nem sei brincar. Leio livros de memórias
e debruço-me no parapeito das décadas
a ver a vida dos outros perfilar-se, a esgotar-se,
a tornar-se pólen, cinza, desespero.
Que nunca falte, filho, a ciência do traço
como hoje a mim me falta a substância do vocabulário,
a arte combinatória que o faz pujante e arrebatador.
Confino-me ao quarto das noites
e à parca quietude que nele ainda encontro.
Hei-de rever-me, eu sei, nos teus desenhos
assim como quem tira retratos antes da partida,
o azul em fundo no preto e branco
de um aceno ou de uma lágrima. Um mês sufocante
rouba-me o ar e deixa-me estonteado dentro de um ca-
[derno.
José Jorge Letria
In Percurso do Método
tela Carla Moresca
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