14/10/2019

UM ROSTO PRO TEU



Em que espelho ficou perdida a minha face?
Cecília Meireles

No rosto da minha mãe, colada imagem.
Aos pedaços — no meu pai, irmãos, amados.
Ficou no rio da infância crivado de punhais vivos,
Foi-se com um lied de Schubert findando na vitrola.
Ficou num quadro do Fuji, no Japão.
Perdeu-se minha face no poema.
Ou afogou-se no rosto outro, narcisado no leito.
Nos hiatos, nos buracos do ser, no clamor do nada.
Foi Deus, além-matéria-tempo-nome.
A minha face se fundiu no esquecimento.
Lavrado pelas coisas, meu rosto se alter-ou:
transformou-se, amador, na coisa amada.
Foi Proteu, Narciso, filho, água, areia, saudade, verbo
Em que sombra se exilará a minha face?
Em que pedra se partirá o meu espelho?
Em que coisas restarão as nossas faces?

Com William Blake eu diria dessa metamorfose
desses pedaços de Deus: He whose face
gives no light, shall never become a star.

Vicente Ceclelero
de A Língua das Sombras
Arte  John Waterhouse


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