19/11/2008


Foto de nighthawk3

INVOCAÇÃO À POESIA

1

Vem Poesia,
com os teus longos cabelos cor de sonho!

Vem com as vestes de chama, com alpercatas
de chama e véus de chama e voz de chama,
com os teus dedos de fogo, incendiados!

Vem dos grandes abismos que resistem
ao nosso grande apelo! Poesia,
deusa da noite e dos desvãos da morte,

vem, estrangeira, cega embora, vem,
iluminada! vem que o sortilégio
da presença invisível nos condena

a esse olhar sem piedade, a esse soluço
que rebenta das pedras e das almas,
para rolar nas águas e no sangue...

2

Vem, Poesia irmã,vem Poesia
incendiária, tu que santificas
e renasces cantando, num delírio
que a nós sem paz, a nós desamparados

sob a rigidez da noite impenetrável,
a nós nos aniquila e uivando investe
contra as árvores más, contra as montanhas

onde os mortos também já não repousam...
Vem Poesia, santa, ó casta, ó leve
gêmea de um paraíso que pressinto,

que pressentimos na saudade, vem,
irmã da noite, irmã da morte, vem
das neblinas mais castas, desdobrada

sobre os corpos que descem regelados,
sobre os olhos inertes, todavia
De luz que não se vê? antes, da luz

3

De luz que não se vê? antes, da luz
que não teremos se nos conservares
tão longe de teu hálito vermelho,

tão longe da feroz simplicidade,
da feroz inocência de teus gestos
de cega e visionária, de teus gestos

que derrubem paredes, atordoam
as muralhas da sombra - essas muralhas
contra as quais chora a noite e se esfacela;

desse intangível céu em que de súbito
te transfiguras, vergastando a treva,
maravilhoso látego de estrelas...

4

Vem, Poesia, do torpor, do amargo
cansaço que cresceu no mundo e esmaga
os corações, do antigo desalento

que hoje nos invadiu e nos sepulta,
desse ódio sem pátria e sem fronteiras,
desse espanto cruel de quem no mundo

não vê nem sente o irmão e em vão carrega
a grandeza da noite sobre os ombros;
dessa eterna aflição de quem não pode

ter sua voz ouvida, nem seu sonho
projetado nas almas, desse eterno
desespero sem Deus! vem Poesia,

umedecida de pureza, e tudo
serenamente envolve no teu frágil,
evanescente canto fugidio...

5

Mas se acaso sofreres , mas se acaso
te alucinar a nossa indiferença
e a torpeza e a cegueira que nos guiam,

explode, Poesia! arrebatada,
explode contra nós! ó libertária,
ó santa, ó deusa oculta! explode e ulula,

e atravessa esta carne e nos castiga
e reduz estes ossos e castiga
e num tropel, no súbito fragor

das ventanias mais desaçaimadas,
na convulsão suprema, explode, ulula,
arranca-nos do mundo, extrai da treva

nosso grande pavor! e nos atira
a esse vale de mortos, a esse espesso
refúgio onde é maior o desespero,

a esse vale abissal onde a loucura
sobre nós deitará um luar de sangue,
- do pavoroso sangue de outra morte...

Alphonsus de Guimaraens Filho
In Água do Tempo

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