06/01/2009

CHIARA


- Torce o bigode, velha - ouvia Dona Clarinda do marido, o velho Campanella, nos momentos de atrito do casal. Minha bisavó portava,herança genética, um buço, encimado por uma verruga, de que as mulheres antigas não ousavam se livrar. Embora o casal dormisse em camas separadas, Campanella proferia tais ofensas da boca para fora, pois carregava, dizem, um profundo ciúme da esposa, que fora, e se conservava uma bela mulher. Pelas lembranças que tenho, pelas fotos, Dona Clarinda manteve o porte altivo, a elegância, com suas saias, blusas e blazers pretos, camisas com jabô, sapatos pretos e meias compridas, grossas, para proteger as varizes.
Chiara Laurelli Macelli, nasceu na Itália, em 1883, na comuna, ou município, de Paola, província de Cosenza, Calábria. Com uns dezessete mil habitantes, hoje, Paola é um balneário turístico, às margens do Mediterrâneo, centro histórico e de peregrinação religiosa, cidade natal de San Francesco di Paola, 1416-1507. A família imigrou para o Brasil quando ainda menina, e estabeleceu-se em Itajubá, sul de MG. Nessa cidade, conheceu e casou-se, aos dezesseis anos, com Francesco Campanella, mudando-se com o marido para Pouso Alegre, MG, onde viveu até o fim de seus dias. Mulher voltada ao lar, de seus talentos ressaltam os pratos que preparava para as ocasiões em que reunia os filhos, netos e bisnetos para almoços ou ceias em sua residência. Pita, espécie de pão sírio, com dentes de alho incrustados, biscoitinhos de araruta, roseta com mel, fatia dourada ou rabanada, roscas caseiras, eram alguns dos quitutes que ofertava, além dos pombos assados, aves que o marido, Campanella, criava para alimentar a família. Outras habilidades de Dona Clarinda, ainda aplicadas à administração do lar, eram os belos trabalhos de crochê, nas toalhas e centros de mesa, o corte e a costura para o vestuário próprio e dos filhos e netos. E mais os cuidados com o jardim onde plantava suas ervas para tempero e uso terapêutico, como hortelã, arruda, losna, poejo, carqueja... Era também uma excelente anfitriã nas ocasiões em que recebia amigas ou visitas ilustres de São Paulo, do jornal italiano Fanfulla ,de que meu bisavô era correspondente,e de membros do Consulado italiano no Brasil. Esmerava-se, então, nos cafés e chás que servia em delicados jogos de prata e de porcelana chinesa.
Dona Clarinda, porém já trazia o embrião da nova, libertária mulher. Com seus talentos culinários, conseguiu um acordo com o Campanella para ganhar comissões nos canudinhos com doce de leite , cremes, cocadas , e sorvetes que fazia para serem vendidos no bar do marido, contíguo à casa onde moravam. Contam-me que o dinheiro conseguido era gasto em roupas , uma fidelidade à sua elegância de que jamais se descuidou em sua trajetória de vida. As unhas sempre com base, os cabelos presos à nuca, em coque, soltos quando dormia, um crucifixo com corrente de ouro, broches e camafeus , presentes do criador de jóias Campanella, eram insígnias permanentes desta vaidosa e refinada mulher. Católica praticante, de princípios morais rígidos, minha bisavó diferia do marido, mais questionador de rituais e restritos preceitos religiosos. Suas crenças muitas vezes a colocavam em conflito com meu avô, seu filho, pai de minha mãe, um homem de grande mediunidade, psicógrafo, que abraçara as idéias do Espiritismo em uma época em que tal doutrina era vista por católicos heresia, manifestação de forças obscuras, não confiáveis.Apesar das divergências religiosas, minha bisavó amava o filho e teve que suportar a dor de enterrá-lo, assim como ao marido, vivendo o final de sua vida com uma filha única, solteira, que dela cuidou. Esse o perfil de Chiara, naturalizada Clara, conhecida por Clarinda, minha bisavó. Mulher das chamadas prendas domésticas, do lar, sem desmerecimento. E que já trazia em si a semente da libertação da velha ordem em sua determinação em conseguir o próprio dinheiro com ganhos de seu trabalho.
De sua ligação com a terra, além das ervas e das rosas que plantava em seu jardim, havia também o amor aos pássaros que criava em seu quintal. Da ligação com o mundo, a vaidade digna, a elegância, o papel que cumpriu como esposa, mãe, avó, elemento agregador do que os ingleses chamam de ‘extended family’ ou família mais ampla.
A ligação de minha ‘Vó Clarinda’, como eu a chamava, com o céu era o dom dessa austera senhora calabresa que mais me encanta e a torna digna de meu maior respeito. Era muito solicitada pelos suas benzeduras que tinham o poder de afastar quebrantos, curar eczemas, cobreiros, feridas em geral. O expediente de que se utilizava, eu me lembro, era o circundar da região ferida com várias cruzes pequeninas, desenhadas à tinta de caneta. Em seguida invocava o nome do Pai, e orava.
De onde, trazia ela esse dom, senão do Alto, visto que não se vangloriava, nem a si arrogava qualquer poder de cura.? A fiel, católica senhora , apesar de suas vaidades, e de algumas posturas radicais, reconhecia-se, nesses momentos, uma ‘ancilla Domini’, uma atendente do Senhor. Pela união, assim, de duas vontades, a sua, humana, e a divina, a cura se operava. Dona Clarinda era mais um canal para a Magia Sagrada (não reservado apenas ao sacerdócio, ou aos santos), manifestando-se ao longo da história humana. E essa espiritualidade é o maior legado dessa mulher, conterrânea de São Francisco de Paula, que filhos, netos e bisnetos tiveram o privilégio de abraçar.



(Fernando Campanella, 02 de Janeiro de 2009)
Statue San Francesco di Paola

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