14/03/2009


Foto de Lincoln Figueiredo

O ENTARDECER EM MINAS

O entardedecer em Minas
traz paz que transcende
da carne , da alma, e é sopro
de desolados becos,
mofo de sacristias.

Casas pobres, solares,
sobrados que vigiam
as extintas riquezas,
efêmero esplendor
do ouro nos veios secos,
dissipados. Em tudo
um silêncio tão frio
que é como se pousassem
mãos de sombra na sombra
que vaga, e somos nós.

Um silêncio de ferro,
silêncio mineral
áspero e tormentoso,
e no entanto sereno,
emoliente quase,
cálido e todavia
esquivo; nostalgia,
pobreza, singeleza,
um leve som de cantos
molhados de um ausente
mar que os olhos perscrutam
em vagos horizontes,
um ressaibo tirante
a cinza e despedida,
uma paixão sem gritos,
morte sem desespero,
o silêncio mineiro.

O entardecer em Minas
desdobra-se em estradas
que no dorso ferido
das montanhas severas
se inclinam sobre os abismos,
se aquietam nos campos
que ondula paz perdida,
na verdade não tida,
longe demais chamando
com seu mato e cupins,
árvores altas, reses.

Silêncio mineral,
que nos queres? Distantes
que vamos, é teu sopro,
como ao marujo o sal,
o sol da maresia,
que nos chama. Estas casas
novas, edifícios
no planalto pousadas,
esta nova explosão
de vida e seiva nunca
explorada, permite
que a ti nós retornemos
com outra perspectiva
de quem se foi no curso
de rios a outras serras,
de quem se deu a campos
retorcidos, ansiosos,
e viu brotar dos longos
silêncios as cidades
que em solidão persistem
como se contemplassem
a si mesmas, nos vales,
-ah, que a ti retornemos
mas já sem qualquer mácula,
mancha da vida suja,
deixando em tuas pedras
em teus adros, colinas,
pecados tortuosos
como as ruas que sonham
eternamenmte imersas
no mineral silêncio,
choro ou raiva, tormenta
que vibra, e não se escuta.

Ah, silêncio de Minas,
ah, o peso das grades,
desolação dos frios
céus, que imenso, estranho
sossego nos altares
de talha, nas portadas,
nos medalhões, nos anjos,
nos ícones, retábulos,
que frêmito de céu
nos Passos, que certeza
austera dos profetas
contemplando, de barbas
de pedra esses de pedra
e sangue desolados
montes onde se ergueram,
como lanternas cegas,
os sonhos graves, ímpetos
libertários, pungência
de fé que em morte esfaz-se,
e hoje é somente brisa,
sempre a brisa passando.
Quem faz tais confidências,
se ninguém ouve? O esparso
silêncio contagia.
Podem os mortos deixar
severas catacumbas
e, hermeneutas da treva,
errar em plena luz
por estes mesmos sítios
onde um dia sofreram
gosto de amor e sonho
da vida; pode a morte,
ela mesma, em disfarce,
simular vida heróica,
estóica, pertinaz;
pouco importa: o silêcio
confunde vida e morte,
que nele se transfundem,
se incorporam. Silêncio
de bocas idas, idos
olhos , hoje no entanto
de novo latejando
como se vida e morte
em tal intimidade
convivam que ninguém
saiba o que há mais vivo
ou mais morto. Legenda
de Minas, glória e exílio,
ofegar de belezas
que a mão tardonha sente
escorrer-lhe entre os dedos,
flama, brisa, dormência,
olor de inexistente,
invisível campina,
mescla de santidade
e desespero , ai! Minas,
como em nós não te agitas
e ao mesmo tempo quedas
hirta e temerária,
com tuas torres, teus
rios discretos, tuas
minas de paz ocultas
e presentes, ai! Minas,
que frescos campanários,
que naves, que caminhos
haverá que nos deixem
no peito malferido
pela noite da vida,
esta emoção incerta,
esta certeza ansiosa,
este anelo de um céu
que nenhum céu nos traz
com os azuis intocados,
esta absurda , assombrada
pureza de quem peca,
já pecou, pecará,
e se lava em tua água,
e em tua paz se salva,
e escuta, por onde vá,
teu silêncio fremindo,
silêncio mineral,
silêncio de ladeiras,
de salas de jantar
com altos móveis solenes,
de varandas de bruma,
de mirantes de brisa,
gelosias que o fogo
de outros sóis requeimou,
a paz dos descampados
onde vagam noturnas
sombras que o sol nenhum
há que apague, tristeza
grave de velhas mãos
em pianos diluídos
em neblina , e um perdido
sabor de desalento
e sonho ,em tudo pondo
um frêmito de chama
um deslizar de asa,
uma carícia de alma,
um repouso de sombra
pura, imemorial.

Alphonsus de Guimaraens Filho
In Água do Tempo

*Postado com carinho para Helen Drumond e Fernando Campanella

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