28/10/2009


Foto by Blogger Aprendiz de Poeta

A-MAR

Uns dias ama-se,outros faz frio, um frio de gelar
os mortos. A indiferença é mais mortal.Durmo na praia
com os excrementos do mar; a vida tão perto
da morte.Decompomo-nos infinitamente
desde o princípio, somos o paraíso de pequenos seres:
somos o paraíso.Uns dias ama-se e é com esses
que atravessamos o milénio.Sabes que este século
terá o coração aberto, poderemos vê-lo trabalhar,
olear as suas peças, vigiar as válvulas, ver como se fecha
o ciclo, como recomeça.Não, este século
não terá um coração mecânico, não se alimentarão dele
as metáforas sofisticadas da moda: apenas um órgão
onde os outros se reconhecem e a unidade do corpo
se refugia.Neste milénio o coração não terá válvulas,
não será bombeado o sangue. Acima das nuvens
há-de pairar como um pequeno animal
a quem esvaziaram os ossos.
Talvez não tenhamos palavras para tanto sangue.
Uns dias ama-se a indiferença
com que os despojos do mar são o paraíso.

Rosa Alice Branco
In Soletrar o dia

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