24/09/2011

E ACONTECEU A PRIMAVERA




I

Que alguém te cante e te descante,
ficou urgente, Primavera,
para que ao menos em cantiga,
neste papel aberto às gentes,
a flor antiga se restaure.

Te cantarei em Pernambuco,
onde és cidade, e no Pará,
onde mulheres plantam malva
sob o título municipal,
e em Rondônia cantarei
a corredeira Primavera,
pois nesses nomes de lugares
e num acidente geográfico
tu pousaste como um pássaro,
modesto pássaro cinzento 
de asas pretas e cauda preta,
só a lembrar, no papo branco,
extintas primaveridades.

Primavera que tanto habitas
a bráctea rósea da buganvília
( em que jardins à vista ocultos 
sob a fumaça que é nosso azul
residual?)
como habitavas, parnasiana,
o soneto crônico e clássico
dos poetas consumidores
de velhos topos europeus,
é forçoso que alguém celebre
o ímpeto juvenil da Terra
mesmo poluída, desossada,
Terra assim mesmo, seiva nossa.

E te ofereço, Primavera,
a arvorezinha de brinquedo
em pátio escolar plantada
enquanto lá fora se ensina
como derrubar, como queimar,
como secar fontes de vida
para erigir a nova ordem
do Homen Artificial.

Ah, Primavera, me desculpa
se corto em meio uma floresta
latifoliada, pois tenho pressa
de correr na estrada de Santos.
Não te zangues se já não vês
em teu perene séquito lírico
aquele sininho-flor, descoberto
em longes tempos por George Gardner
e que soava só no Brasil:
foi preciso (teria sido?)
matar o verde, substituí-lo 
pela neutra cor uniforme do progresso.

Primavera, primula veris,
em palavra quedas intacta,
em palavra pois te deponho
a minha culpa coletiva,
o meu citadino remorso
minha saudade de água, bicho,
terra encharcada de promessas,
e visões e asas e vozes
primitivas e eternas, como 
eterno ( e amoroso) é o homem
ligado ao quadro natural.

Primavera, fiz um discurso?
Primavera, tu me perdoas?...


II


22 de setembro, mina minha.
Vamos curtir a primavera
em compact cassete tape, meu morango?
Bota aí o Botticelli
estereotransfigurado em Debussy
e vê (primeiro fecha os olhos) Simonetta
Vespucci toda flor
florentil florindamente
(bulcão?) entre cordas e resinas
da flora da Tijuca...

- Não. Prefiro o Sacre du Printemps
que transa a primavera mais primavera.

Assim, no sala-e-escuro
do sala-e-quarto conjugados
os dois ficamos respirando
um princípio  de seiva e de nenúfar
enquanto a chuva - plic - tamborina
seu samba de uma nota nota só
na área de serviço.

É primavera,broto-brinco:
saiu no jornal,
a TV anunciou,
o Governo consentiu,
o Congresso aplaudiu
o comércio vendeu
arranjos de ikebana
e em algum lugar florescem três-marias
que são muitas marias, muitos nomes.

Vamos também curtir os nomes
(são presentes do povo à gente-bem):
riso-do-prado
(cadê o prado?),
amor-de-estudante
(pobre! no cursinho
que vira cursão
e invade o Brasil),
unha-de-gato
(envenenado
no Passeio Público?),
sempre-viçosa...
Isto! A esperança
pousa na balança
o seu peso-pluma.
- Você tá esquecido
da maria-branca,
da pombinha-das-almas
e da noivinha...
Asas-pseudônimos
de primavera.

(Ah, vero barato
esse de brincar
de estação das flores
de concreto-objeto!)

- Oi, depressa, vamos
semear canteiros,
preparar estacas
e mergulhões,
plantar tubérculos
de cromo -gladíolos,
túberas de dálias
e tinhorões
repicar sementeiras,
controlar lagartas,
ácaros, e trips,
dizimar pulgões.
(Ui, primavera é fogo
se levada a sério")

- Vamos pintar de verde
as áreas crestadas ,
pôr na parede
a árvore genealógica,
comprar um sábia
mecânico,
sortear
o beija-flor de beijar cimento?

É primavera, escuta o Burle Marx:
diz que havia jardins
em torno das casas,
havia matas
a cavaleiro das cidades,
florestas
onde o jacarandá e o mogno conversavam
a conversa de séculos.
(Fecharamn o bico,
chegado o eucalipto.)
Broto gentil, a primavera
será um sonho de sonhar-se
na fumaça
no grito
no sem azul deserto
das cidades mortas que se julgam vivas?

Carlos Drummond de Andrade
In Discurso de Primavera e Algumas Sombras




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