Temos que deitar abaixo do passado
e tal como se constrói
andar por andar, janela por janela,
e o edifício sobe
assim, vamos descendo
telhas quebradas primeiro,
depois orgulhosas portas,
até que do passado
começa a sair pó
como se se batesse
contra o chão,
começa a sair fumo
como se houvesse fogo,
e cada novo dia
brilha
como um prato
vazio:
não há nada, não houve nada:
é preciso enchê-lo de novas e espaçosas
rações,
então, para o fundo
o dia de ontem cai
à água do passado
como num poço,
à cisterna
daquilo que já não tem voz nem fogo.
É difícil
habituar os ossos
a perderem-se
os olhos
a cerrarem-se
mas
fazê-mo-lo
sem o saber:
tudo era vivo,
vivo, vivo, vivo
como um peixe escarlate
mas o tempo
com a noite e um pano
foi apagando
o peixe e o seu tremor:
na água na água na água
vai caindo o passado
ainda que se agarre
a espinhos
e raízes:
partiu partiu e de nada valem
as recordações:
já a pálpebra sombria
cobriu a luz do olho
e aquilo que vivia
já não vive
e o que fomos já não somos.
E a palavra ainda que as letras tenham
iguais transparências e vogais
agora é outra e outra é a boca agora:
mudaram os lábios, a pele, a circulação,
outro ser ocupou o nosso esqueleto:
aquele que vivia em nós já não está:
partiu, mas se chamarem, responderemos
"Aqui estou" sabe-se que não estamos,
pois aquele que estava, esteve mas perdeu-se :
perdeu-se no passado e já não volta.
Pablo Neruda
In Plenos Poderes
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