21/02/2012

A MÚSICA DA TERRA



 A dor habita em nós, o cravo a ignora.
A vida, uma gavota? Pura dança
o amor? No minueto de Lully
cabe a dificuldade de existir?

Quinta-essência do angélico, no caos,
paira a graça de Mozart sobre o abismo,
sem devassá-lo - pássaro de nuvem.
O tempo é outro metal, a comburir-nos.

Urge romper o gosto, a morna límpida,
e sangrentas estilhas do momento
passar à forma nobre da sonata.
Urge extrair do piano o som dramático.

E suscitar o diálogo patético
entre piano e violino, qual se escuta,
na penumbra da alma, as duas vozes,
um rumor de paixão se entretecendo.

Eis que a música deixa de ser pura.
Os serafins e os elfos se despedem.
A terra é lar dos homens, não de mitos.
Há  que desmascarar nosso destino.

Em tatear incessante, no conflito
corpo a corpo entre o ser e a contigência,
nova música, ungida da tristeza
mas radiante de força, vem ao mundo.

Luta  o homem na área desolada
de sua solidão; luta no palco
fremente de contrastes, percebendo
que pouco a pouco cerram-se os espaços

da percepção,  e tudo se limita
à captação interna, de sinais
silentes, impalpáveis, invisíveis,
nunca porém tão vivos se captados. 

À proporção que a dor aumenta, e em volta
nega-lhe o amor seus bálsamos terrestres,
ganha requinte a fábrica sonora
de eternizar a vida breve em arte.

Es nuss sein! É preciso! Na  amargura, 
na derrota do corpo, sublimada,
a canção do heroísmo e a da alegria
resgatam nossa mísera passagem.

E entreaberta a sinfonia suas palmas
imensas, a conter todo o rebanho
de perplexos irmãos, de angustiados
prospectores de rumo e de sentido.

para a sorte geral. O homem revela-se
na torrente melódica, suplanta
seu escuro nascer, sua insegura
visão do além, turva de morte e medo.

Ó Beethoven, tu nos mostraste o alvorecer.

Carlos Drummond de Andrade
In Discurso da Primavera e Outras Sombras



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