01/04/2012

NARCISO E NARCISO



Se Narciso se encontra com Narciso
e um deles finge
que o outro admira
(para sentir-se admirado),
o outro
pela mesma razão finge também
e ambos acreditam na mentira.

Para Narciso
o olhar do outro, a voz
do outro, o corpo
é sempre o espelho
em que ele a própria imagem mira.
E se o outro é
como ele
outro Narciso.
é espelho contra espelho:
o olhar que mira
reflete o que  o admira
num jogo multiplicado em que a mentira
de Narciso a Narciso
inventa o paraíso.

E se amam mentindo
no fingimento que é necessidade
e assim
mais verdadeiro que a verdade.

Mas exige, o amor fingido,
ser sincero
o amor que como ele
é fingimento.

E fingem mais
os dois
com o mesmo esmero
com mais e mais cuidado
- e a mentira se torna desespero.
Assim amam-se agora
se odiando.

O espelho
embaciado,
já Narciso em Narciso não se rima:
se torturam
se ferem
não se largam

que o inferno de Narciso
é ver que o admiravam  de mentira.

Ferreira Gullar
In Toda Poesia,
tela Nicolas-Bernard Lépicié (1735–1784)

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