A Leda
Sem o sublime, que é o poeta? Sem o inefável,
como pode louvar, não traindo a si mesmo,
a plena e estranha juventude
da moça a quem ama?
Que é o poeta, que imita as marés,
sem adquirir com o
tempo uma serenidade de coisa sempre nua
como se as estrelas estivessem
caminhando governadas
pelo seu riso
e seus braços agitassem as árvores
feridas pelo clarão da lua?
Sem que seu canto suba até os céus, sufocante
música da terra,
que é o poeta?
Libertado estou quando canto. E
quero
que minha respiração oriente a vontade das nuvens
e meu pensamento
de amor se misture ao horizonte.
Cantando, quero outubro, gosto de lágrima,
salsugem,
no instante anterior ao despertar, folha voando.
Sem o
inefável, que dura sempre, sem permanecer,
como conseguirei louvar essa moça
a quem amo
e que nasce em minha lembrança plena como a noite
e
triunfante como uma rosa que durasse eternamente
e não se limitasse à glória
de um dia?
Sem o inefável, que valoriza as mãos e faz o Amor voar,
não
poderei descer de repente
ao inferno de seu corpo nu.
O sobrenatural
ainda existe. E não seremos nós
que alteraremos a indizível ordem das coisas
com as nossas mãos que poderão ficar imóveis
em pleno amor, diante do
corpo amado.
É inútil pensar que os anjos morreram
ou se despaisaram,
buscando outros lugares.
Eles ainda estão, unidade admirável do Dia e da
Noite,
entre as nuvens e as casas em que moramos.
Repentinamente, as
vozes da infância nos chamam para a feérica viagem
e lembram que podemos
fugir para o longe guardado ainda
no sempre.
Então, nossas necessidades
não se reduzem apenas a comer,
dormir e amar.
Temos necessidade de
anjos, para ser homens.
Temos necessidade de anjos, para ser
poetas.
Vem, incontável música, e anuncia
(ao poeta e ao homem,
humilde unidade)
a ressurreição diária dos anjos.
Restaura em mim a
certeza de que a folha voando é seu indomável divertimento
pois às vezes
sinto que meu primeiro verso foi murmurado talvez
sem que eu soubesse, por
um anjo
perturbado com o meu ar desesperado de papel em branco.
Não é
a manhã, depositando a semente de alegria no coração
dos homens.
Não é a
vida, cântico triunfal descendo sobre as almas.
Não é o poeta, subindo pelos
andaimes de carne da lembrança
de uma mulher.
São os anjos, que
vieram ligar-nos mais uma vez
à ordem eterna e, à anunciação.
Não nos
libertaremos jamais desses anjos
feitos de terra e mar, celestes criaturas
que deixam cair em nós o sol da harmonia.
É inútil matar os
anjos.
Eles são invisíveis e traiçoeiros.
De repente, quando nos sentimos
seguros, já não somos
os consumidores de instantes, e estamos
entre o
Dia e a Noite, no umbral
de uma eternidade vigiada pelos anjos.
Lêdo Ivo
In Os Melhores Poemas de Lêdo Ivo
tela Giotto
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