31/12/2008


Foto by Fernando Campanella

AO QUE FINDA E AO QUE INICIA

Um brinde
à santa paciência dos homens de boa vontade, à inclusão do amor, ao coração breve, à equanimidade, à noite escura que pressente a madrugada, ao Espírito que nos aquece, à boa palavra, ao alívio da dor, aos amigos, aos que nos cercam – e um perdão aos que nos ferem , aos que nos esquecem...

Bebamos à saúde
de Bagdá, Telavive, Palestina e Nova Iorque, das Áfricas de sul a norte, da Europa, Ásia e Islândia, dos Lamas, do cordeiro de Deus, do papa, das madrassas, dos avatares, dos babalorixás, da boa política de todos os credos, das Américas de toda sorte, do continente australiano, das ilhas, dos oceanos, dos pingüins da Antártida, dos ursos do Pólo Norte...

Uma saudação
aos judeus, cristãos e mulçumanos, aos mouros, hindus e budistas, e aos ecologistas militantes, aos celtas, índios , beduínos, esquimós, pigmeus, ( aos eventuais alieníginas), aos peregrinos, aos românticos, aos ateus, aos poetas errantes, aos bem resolvidos e aos que sofrem – os do mundo excluídos, os encarcerados, os terminais e delirantes - ao velho e à criança, aos grandes e pequeninos...

Loas
aos pássaros de toda plumagem e canto, aos insetos, répteis e sapos, à dança da chuva, à alquimia do sol, às folhagens, ao pólen, aos cristais de quartzo, aos riachos, à lua, aos céus, ao solo, aos planetas, aos meteoritos e pirilampos, aos buracos negros e às intransponíveis galáxias – e à arte maior que a tudo abraça e que de tudo se encanta...

Uma libação
aos vivos e aos mortos, ao ano que principia e ao que se desmancha, ao dia-após-dia, à Terra, à nossa espoliada casa , à nossa jornada, ao protocolo de Kioto, à física quântica, a Você, a Mim, à nossa imensa família, aos vários sexos e raças, às nossas diferenças e igualdade, à utopia, a um novo milênio , à esperança de um novo mundo com mais LUZ e TOLERÂNCIA, a um DEUS, enfim, maior à nossa própria imagem, às cores, ao arco da nova aliança.

(Fernando Campanella, 31 de Dezembro de 2006)

Foto de veyan1977

SER E ESTAR

A nuvem, a asa, o vento,
a árvore, a pedra, o morto...

tudo o que está em movimento,
tudo o que está absorto...

aparente é esse alento
de vela rumando um porto

como aparente é o jazimento
de quem na terra achou conforto...

pois tudo o que é está imerso
neste respirar do universo

- ora mais brando ora mais forte
porém sem pausa definida -

e curto é o prazo da vida...

e curto é o prazo da morte.

Mario Quintana
In Apontamentos de História Sobrenatural

Foto de veyan1977

CANTATA

EU te amo anjo-homem-pássaro
porque tens nas asas constelados
todos os brilhos que eu adivinhara
e todas as luzes do meu céu-onírico.

Eu te amo pelo todo azul
dos teus vôos certos-pressentidos
e por teres no peito uma harpa
e uma flauta de doces melodias.

Eu te amo anjo-homem-pássaro
por poderes atravessar o arco-íris
trazendo sob as asas uma estrela
uma lua e um céu em tua boca.

Maria Lúcia Nascimento Capozzi
In Álbum de Retrato

Foto de myruby

RÉQUIEM
Para Ana Cristina César

Teus pés ainda trazem
restos de sol e chuvas
dos caminhos percorridos
no limiar das palavras
imemoráveis.
Tuas mãos guardam ainda
lembranças de outras luzes
apanhadas ao vento
onde o silêncio se oculta
indevassável.
Teu coração viageiro
de súbitos sentimentos
vê sonhos alucinantes
atravessando teus dias
improváveis.
Tua boca entreaberta
suga o silêncio mortal
de tudo o que não foi dito
na trilha de teus enredos
deslembrados.
Teus passos predestinados
cruzam linhas imaginárias
em direção ao sublime
conteúdo das palavras
essenciais.

Maria L.Nascimento Capozzi
In Álbum de Retratos

Foto de sweet_nightmares

Nos dias de praia
o sol, curioso, espia
as curvas da moça.

Delores Pires — Estações

30/12/2008


Foto de myruby

REINAUGURAÇÃO

Entre o gasto dezembro e o florido janeiro,
entre a desmitificação e a expectativa,
tornamos a acreditar, a ser bons meninos,
e como bons meninos reclamamos
a graça dos presentes coloridos.
Nessa idade - velho ou moço - pouco importa.
Importa é nos sentirmos vivos
e alvoroçados mais uma vez, e revestidos de beleza, a
exata beleza que vem dos gestos espontâneos
e do profundo instinto de subsistir
enquanto as coisas em redor se derretem e somem
como nuvens errantes no universo estável.
Prosseguimos. Reinauguramos. Abrimos olhos gulosos
a um sol diferente que nos acorda para os
descobrimentos.
Esta é a magia do tempo.
Esta é a colheita particular
que se exprime no cálido abraço e no beijo comungante,
no acreditar na vida e na doação de vivê-la
em perpétua procura e perpétua criação.
E já não somos apenas finitos e sós.
Somos uma fraternidade, um território, um país
que começa outra vez no canto do galo de 1º de janeiro
e desenvolve na luz o seu frágil projeto de felicidade.

Carlos Drummond de Andrade
In Farewell

Francisco de Zurbaran » Saint Francis in Ecstasy

SOLILÓQUIO DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS

Vezes sem conta converso Contigo

Atento me ouves
sem dizer palavra

As vezes escutas
distraida Mente
como quem olha uma folha
que lento o vento embala
e a calma balança

Converso Contigo
mas Tu não respondes
E meus amigos me chamam de louco

Só rindo sozinho
sei que não sou louco

porque posso ouvir a Voz do Silêncio

Cid Seixas
In Fonte das Pedras

Foto de veyan1977

PARTILHA

Primeiro,
juntamos nossas coisas,
nossossono

e fizemos um só
di
a
mante.

Depois,
dividimos o tempo
em sonho e náusea,
doi
s
contratempos.

Agora,
vamos se
par
ar
nossos bens menores
que o maior
se perdeu.

Mas
pra que
par
t
ilha

se so(m/n)os tão só(i)s?

Cid Seixas
In Fonte das Pedras

Foto de .sw_in_shift

ALIMENTO

Para o nosso encontro
arrumo sobre a mesa
uma toalha de luar
e cálices cheios até a borda
de estrelas líquidas;
os pratos estarão perfumados
com a essência das primaveras.

Comeremos com as mãos
uma comida limpa e suave,
pão do mais puro trigo
e azeite de bíblicos olivais.
As palavras sairão de nossas bocas
como pássaros que finalmente
encontraram, depois de uma longa
travessia, um país cheio de sol.

E, então, seremos alimento
um para o outro.

Roseana Murray
In Recados do Corpo e da Alma.

Foto de veyan1977

DESALENTO

O mar é belo.
Fala-me de partidas.
Quase nunca de chegadas.

O mar é dissabor
com ondas arrastando solidões.
Águas profundas sepultam liberdades.

O mar é belo.
Embala a saudade
essa tristeza d'alma
que carrego não sei desde quando,
para onde, de quem, para quem.

Desisto da busca.
Oferendo minha angústia
às águas cúmplices
do meu desalento.

Orismar Rodrigues
In Poemas do Oriente e de Outros Reinos

Foto de veyan1977

COTIDIANO

Aceitar as mazelas do dia-a-dia
só porque elas chegam e pronto?
Abraçar causas das quais não fomos
consultados
é arbitrariedades do cotidiano.

O inesperado, por ser surpresa,
é também indesejado.
Repudio esse instante
atormentador da alma.

Consciente desse momento indesejado,
não abaixo a cabeça,
nem fico indiferente às angústias,
Meu espírito é inquietude.

Que o amanhã venha amanhã.
Se encontrar-me vestido de estrelas,
que elas brilhem em céu azul de lua cheia.

Mas, se o amanhã chegar sombrio,
que os meus olhos se desfaçam em luz
e iluminem as sepulturas dos amantes.

Orismar Rodrigues
In Sete Poemas da Brevidade

Foto de Felipe Vieira

ENIGMA

Decifrar teus olhos
é como ler em pergaminhos
uma escrita desconhecida,
é como ler na superfície
do mar
um navio enterrado,
o segredo das conchas.
Decifrar teus olhos
como se teus olhos fossem
o lado oculto da lua.

Roseana Murray
In Recados do Corpo e da Alma

Foto por veyan1977

VIDA E POESIA

A lua projetava o seu perfil azul
Sobre os velhos arabescos das flores calmas
A pequena varanda era como o ninho futuro
E as ramadas escorriam gotas que não havia.
Na rua ignorada anjos brincavam de roda...
� Ninguém sabia, mas nós estávamos ali.
Só os perfumes teciam a renda da tristeza
Porque as corolas eram alegres como frutos
E uma inocente pintura brotava do desenho das cores
Eu me pus a sonhar o poema da hora.
E, talvez ao olhar meu rosto exasperado
Pela ânsia de te ter tão vagamente amiga
Talvez ao pressentir na carne misteriosa
A germinação estranha do meu indizível apelo
Ouvi bruscamente a claridade do teu riso
Num gorjeio de gorgulhos de água enluarada.
E ele era tão belo, tão mais belo do que a noite
Tão mais doce que o mel dourado dos teus olhos
Que ao vê-lo trilar sobre os teus dentes como um címbalo
E se escorrer sobre os teus lábios como um suco
E marulhar entre os teus seios como uma onda
Eu chorei docemente na concha de minhas mãos vazias
De que me tivesses possuído antes do amor.

Vinícius de Moraes
In Antologia Poética

Foto por veyan1977

TERNURA

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar
[ extático da aurora.


Vinícius de Moraes
In Poesia completa e prosa


Foto de veyan1977

SONHO

Um dia os homens acordaram
e estava tudo diferente
das armas atômicas nem sinal havia
e todos falavam a mesma língua
falavam poesia
quem visse a Terra do alto
nem reconheceria
eram campos e campos de trigo
e corações de puro mel
e foi uma felicidade tamanha
nos jornais nem um só crime
que contando ninguém acreditaria.

Roseana Murray
In Lições de Astronomia

by Kim Anderson

AMIGO

No rumo certo do vento
amigo é nau de se chegar
em lugar azul
amigo é esquina
onde o tempo pára
e a terra não gira
antes paira em doçura
contínua
oceano tramando sal
mel inventando fruta
amigo é estrela sempre
no rumo certo do vento
com todas as metáforas
luzes imagens
que sua condição de estrela
contém.

Roseana Murray
In Lições de Astronomia

29/12/2008


Foto de veyan1977

FAZ-ME O FAVOR

Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.

É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és nao vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor - muito melhor!-
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

Mário Cesariny

OLHAR ESPECIAL




 com gardénias

O dia
repousa
cada vez mais
azul-imperial
coroado
por um velado
e fino disfarce
da realidade

próximo
uma criança
tropeça
o olhar de desejo
inquieta
como vazia
uma flor
desliza
no largo oceano

segue-se
uma data final
sublimada
antes do último acorde
conduzir
a alma dos sentidos
neste espaço
escuro
infinito

sobe
o silêncio tonal
matizado com gardénias
a cobrir a pele do mar

João Maria Nabais
Foto de ClaraDon

POEMA DISTANTE



Sou o deserto, que te ama
como a água ama o deserto.
Sou o deserto e me atravessa
um rio seco.Por seu leito
corre a sede para tuas mãos.
A sede.

Estou afundando no esquecimento,
em sua areia devoradora.
Como, às vezes, na América do Sul
as pobres bestas espantadas,
no barro azul que perfumam
flores súbitas e monstruosas,
se afundam, devagar.

Amor, acaba de esquecer-me.
E Deus tenha piedade de minha alma.

Eduardo Carranza
In Antologia Poética
Foto de veyan1977

TEMPO DE ESQUECER




Sabes que sou como um rio abandonado
no sedento leito do esquecimento,
e a tua vã lembrança tão unido
como a água ao seu céu refletido;

Sabes que sou como o tempo desfolhado
na mão final do que foi perdido
e, como um horizonte proibido,
me envolves o sonho vigilante;

Sabes que sou como o ar, destinado
ao vôo de tuas aves, som ferido
surdido rouxinol e enamorado:

Sobre este coração crepuscular
e por turvas marés assaltado,
tornas-te nuvem voando para o esquecimento.

Eduardo Carranza
In Antologia Poética
foto de veyan1977

ANDA O TEMPO



Olha o tempo, caído nessas pétalas
e evaporado nessas vagas nuvens,
olha-o no olhar e no sorriso
em que os belos rostos se desfolham.

Anda o tempo, anda o tempo, o sem-cessar
com pés de névoa e de silêncio anda
frutas e corações amadurecendo.

Ouve o passo do tempo como pisa
meu coração,as uvas e os sonhos;
ouve o rio do tempo como cruza
terras floridas, jovens comarcas...


Vem, senta-te à direita de minha alma,
à margem do rio do crepúsculo,
e oponhamos ao tempo, ao inimigo ,
a doçura de sermos dois na tarde.

Eduardo Carranza
In Antologia Poética
tela A.Andrew Gonzales

28/12/2008


Foto de epic steve

As gotas de orvalho
cintilando à luz do sol.
Pérolas fugazes.

Delores Pires — Estações

Foto de julorealparis - aurora boreal

ESPANTO POR ESPANTO

a vida é isso?
essa espera de auroras
boreais
estar a sós com seus
pensamentos
falcões amestrados
em direção do passado
ao futuro
ao fundo duro
dos abismos?

O tempo não se mexe
penhasco imutável
no oceano das horas
nós é que nos vamos
estranhas marionetes
sem rumo

então a vida é isso
segundo por segundo
estrela por estrela
espanto por espanto

Roseana Murray
In Poesia Essencial

Foto de Giovanni88Ant

REDE

que a poesia
apanhe o invisível
em sua rede de nuvens e vento
por exemplo
o leve lamento que atravessa a casa
quando o passado invade
tudo de repente
e com sua teia transparente
paralisa o gesto
no meio do movimento

que a poesia diga
o que não pode ser dito
pedra e sentimento.

Roseana Murray
In Poesia Essencial

Foto de veyan1977

Leques de verão
empurram nuvens pra longe
zombando da chuva.

Delores Pires — Estações

Foto de Márcia_Marton

NO CAMPO

Aproveita os nós desatados
o silêncio das águas perdidas
as fendas nas montanhas
aproveita as violetas entrecortadas
de desejo
os sinos soltos pela chuva
como sonhos desencantados
aproveita as caravelas invisíveis
assombrando as noites
os pios das corujas solitárias
aproveita os caminhos recém-abertos
por cogumelos escarlates
aproveita as rendas dos luares
de agosto
os rostos pontuando as sombras
aproveita os cavalos engravidando a terra
aproveita o peso escuro da terra
e tece teu poema.

Roseana Murray
In Poesia Essencial

27/12/2008


by Allposters

XXXIV - DA PERFEIÇÃO DA VIDA

Por que prender a vida em conceitos e normas?
O Belo e o Feio...o Bom e o Mau...Dor e Prazer...
Tudo afinal, são formas
E não degraus do Ser!

Mario Quintana
In Poesias


ALADOS

Vamos todos morrer alados
como esses loucos voltados

para seu próprio segredo.
Vamos morrer (não de medo)

entre módulos, estreitas
naves de asas suspeitas,

acoplagens, sinais raros
de outros mundos, anteparos

contra nossa própria e triste
solidão que nem existe.

Que nem existimos:sós
embora, amargos, nós

vemos fugir nossos passos,
nossas vozes, nossos traços,

e sucumbimos aos poucos
como bichos vãos e ocos

num pouso instável pousados.

Vamos todos morrer.Alados.

Alphonsus de Guimaraens Filho
In Discurso no Deserto

Foto de ***Bud***

UM PENSAMENTO-CARDO
A Guilherme Figueiredo

Um pensamento cego, um pensamento
como um cego sem guia, como um vento

que se destrói rugindo nos rochedos,
um pensamento como a dor de dedos

fraturados de encontro ao inexistente
muro do sonho sempre em frente, em frente

dos olhos que o amor ido e consumado
fez candeias que um barco já quebrado

conduz, e ao vento tremem, nas ilhotas
onde mal sentem saibo das derrotas,

um pensamento cego, um pensamento
fruto de luz nas bocas um momento

tão-só, logo em veneno convertido,
ou no fel mais terrível ou temido,

um pensamento como o próprio amor
malferido e deserto e errante por

estradas que nem há, onde meditam
mortos solenes, onde periclitam

entusiasmos devorados pelo
tropel do vento sempre em atropelo,

onde morrem de súbito as lembranças
mais belas e dispersam-se crianças

e dançarinos, lúcidas atrizes
que são felizes e logo infelizes,

um pensamento cego como um dardo,
como um aríete,um pensamento-cardo

que punge e fere e que se malbarata
e apenas deixa um rastro de ouro e prata

sobre o que foi a estrela já perdida,
um sumo acaso, o resto de uma vida.

Alphonsus de Guimaraens Filho
In Discurso no Deserto

Foto de ***Bud***

ENTRE TEUS CAMINHOS

Entre teus caminhos vaguei, meio incerto.E ainda hoje incerto
busco-me em teus caminhos.Sei que estás, não alheio, apenas
no teu silêncio que me povoa de estranhas claridades.

Nem digo teu nome; não o invoco em vão; prefiro aprender
no fundo de não sei que noite as centelhas dos teus passos.
E a súbita fulgurância que deve ser a tua voz.

Alphonsus de Guimaraens Filho
In Discurso no Deserto

Foto de ***Bud***

QUANDO
A Gilberto Mendonça Teles

Quando sorrimos para a própria solidão como quem recolhe
[em certos álbuns seu olhar já perdido,
é uma noite que pende, não a noite, é uma noite grávida
[de suplícios,
é uma noite cega como os cegos que vão esmigalhar em esquinas
seu próprio e mutilado assombro.

Quando cantamos nossa própria dor, mesmo que ela não exista,
(ironicamente supomos que não existe, mesmo que clame em
nós indisfarçavelmente)
há uma estranha música crescendo,
se dispersando em nós como o verbo dos loucos.
Um grande ofego de paralisia.

Dissolve-se o corpo, dissolve-se a alma: pouco importa.
Mas eu quero gritar que a vida cega nos ilumina
com seus mal entrevistos paraísos,
e a certeza de que o inferno freme em cada gesto de que emana
outro inferno
só nosso,
jamais reconhecido pelos que conosco estão à mesma mesa
e dizem as mesmas palavras que a nada mais conduzem
senão ao frio,
ao cansaço
de as repetir, repetir incessantemente,
e, se possível, chegar à margem indevassável
de que nunca dirão as bocas dissipadas,
ou dirão, ou dirão sem decifrarmos nunca.

Alphonsus de Guimaraens Filho
In Discurso no Deserto

Foto de deepintheforestcat

Se algum dia me suceder que, com uma vida firmemente segura, possa livremente escrever e publicar, sei que terei saudades desta vida incerta em que mal escrevo e não publico. Terei saudades, não só porque essa vida fruste é passado e vida que não mais terei, mas porque há em cada espécie de vida uma qualidade própria e um prazer peculiar, e quando se passa para outra vida, ainda que melhor, esse prazer peculiar é menos feliz, essa qualidade própria é menos boa, deixam de existir, e há uma falta.
Se algum dia me suceder que consiga levar ao bom calvário a cruz da minha intenção, encontrarei um calvário nesse bom calvário, e terei saudades de quando era fútil, fruste e imperfeito. Serei menos de qualquer maneira.
Tenho sono. O dia foi pesado de trabalho absurdo no escritório quase deserto. Dois empregados estão doentes e os outros não estão aqui. Estou só, salvo o moço longínquo. Tenho saudades da hipótese de poder ter um disaudades, e ainda assim absurdas.
Quase peço aos deuses que haja que me guardem aqui, como num cofre defendendo-me das agruras e também das felicidades da vida.

Bernardo Soares - Livro do Desassossego

Foto de tanakawho

ENTRE PARÊNTESES

Minha vida não é tua
nem é minha tua vida...
Somos partes
fragmentadas
de uma ânfora
partida.

Não são tuas minhas liras
nem tuas liras são minhas...
Ocultamos
a alma nua
na paráfrase
das linhas.

Tuas mágoas não são minhas
minhas mágoas não são tuas...
Somos os lados
dessas calçadas
desencontradas
das ruas.

Por mim não te desesperas
nem por ti eu me desatino...
Somos apenas
os parênteses
de uma linha
do destino.

Afonso Estebanez

Foto de tanakawho

AMOR É FOGO QUE ARDE SEM SE VER

Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que se ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís Vaz de Camões

Foto de Fr.Antunes

FACE TO FACE

De todos os momentos insondáveis
mais bonitos da vida de uma mulher
– aquele em que ela toma a bandeira
sacode a poeira da breve amargura
e faz vibrar na alma as armas doces
de todo o encanto e formosura
na defesa ou conquista do amor
fundamental de sua vida...

Esse é o mais belo de todos.

Face a face, a alma de um homem
que tem as portas e janelas abertas
para o amor mais simples e fraterno,
sempre sabe quando esse momento
o encontra... E talvez o faça eterno...

Andar pelo mundo de vida pronta
e alma completa bem poderia ser,
a despeito de todas as melancolias
das prontas filosofias de plantão,
a maior e mais sábia recomendação
para os que acreditam ser possível
viver com a cabeça nas estrelas
e os pés no chão...

E não é tão complicado assim
caminhar num chão de estrelas...

Afonso Estebanez

26/12/2008

A SOFREGUIDÃO DE UM INSTANTE



Tudo renegarei menos o afecto,
e trago um ceptro e uma coroa,
o primeiro de ferro, a segunda de urze,
para ser o rei efémero
desse amor único e breve
que se dilui em partidas
e se fragmenta em perguntas
iguais às das amantes
que a claridade atordoa e converte.
Deixa-me reinar em ti
o tempo apenas de um relâmpago
a incendiar a erva seca dos cumes.
E se tiver que montar guarda,
que seja em redor do teu sono,
num êxtase de lábios sobre a relva,
num delírio de beijos sobre o ventre,
num assombro de dedos sob a roupa.
Eu estava morto e não sabia, sabes,
que há um tempo dentro deste tempo
para renascermos com os corais
e sermos eternos na sofreguidão de um instante.

José Jorge Letria
In Variantes do Oiro
Foto de NaturalLight

O AMOR TUDO MATA QUANDO MORRE



Eu morro dia a dia, sabendo-o, sentindo-o,
com a morte do amor em mim.
Esvaiu-se, ensandeceu, partiu,
espécie de sol sepultado por mãos ímpias,
numa cratera de lua, algures,
ou na tristeza de um retrato emudecido
pela ausência de vozes em redor.
Sem ele, a casa ficou deserta
de risos, acenos e afectos, de tudo,
as mãos ficaram ásperas, secas,
a pele do rosto gretada, fria,
e o sangue tornou-se lento e espesso,
incapaz de dar vida às pequenas folhas
orvalhadas da imaginação das noites.
A erva cresce em redor de mim,
os limões ficaram ressequidos sobre
a toalha bordada, num canto da mesa.
O amor tudo mata quando morre,
detendo no seu movimento elementar,
a máquina que ilumina o coração do dia.

José Jorge Letria
In Quem com Ferro Ama
Foto de NaturalLight

O DESERTO INOMINÁVEL


O deserto é um silêncio depois do mar,
É o êxtase da luz sobre o coração da areia.
Vai-se e volta-se e nada se esquece.
Tudo se oculta para depois se dar a ver
No ponto em que os ventos se cruzam
E as almas gritam no fundo dos poços.
Os cestos sobem e descem prometendo água,
Uma frescura que derrete a febre.
Não são as tâmaras que adoçam a boca,
É a beleza das mulheres dissimulando
O desejo como um pecado sob a escuridão dos véus.
As serpentes assobiam ou cantam
Conforme o veneno que lhes molda o sangue.
Enroscam-se sobre as pedras
como fragmentos de lua à espera da manhã.
E a sombra alonga-se nas dunas
Ondulando rente às palmeiras
Como a última cobra do medo das crianças.
Não há ruído maior que este silêncio
Que se serve com tâmaras e com chá
Na mesa rasteira, sobre a terra molhada.
É no que não se nomeia que está o infinito.

José Jorge Letria
In Os Mares Interiores
Foto de NaturalLight

Foto de Lua Nogueira

Suave serena
a rosa saudando a vida
ao toque do vento.

Delores Pires
In Estações

Foto de r.moreira32

QUANDO BEBEU O ELIXIR PERDEU A DIMENSÃO

III

O sonho é a ponte
Que vai do infinito ao infinito,
É a medida sem comparação,
É a presença do que se imagina.

Sonhar talvez só seja
Reconhecer o que já nem a alma sinta
Nem o próprio pensamento veja.

Ana Hatherly
In Um Ritmo Perdido

Foto de r.moreira32

A minha vida é poética:
Paira entre a vaga mentira e a realidade.
O amor me acontece
Como as folhas às árvores,
E tão singularmente,
Que já nem sei se é natural à árvore ter folhas
Ou estar nua...

Ana Hatherly
In Um Ritmo Perdido

Foto de r.moreira32

Verte rosas teu rosto vês mudado
no tempo rasto de tecíveis horas
teu sentido ou cuidado tido dado
por ti de quem não sabe como foras

Amor porque no circo só ferência
alguém de algum não disse lei nem quando?
Mata-me tanta vez quanta violência
é violeta ou é a letra desviolando.

Luminados assombros sombras íveis
por onde Amor? por onde que remorsos
nascem dos dedos harpas retangíveis?

Verte rosas teu rosto vês possíveis
uma a uma tuas lágrimas dos nossos
dias mal soletrados e ilegíveis.

Maria Alberta Menéres Melo e Castro
In Os Mosquitos de Suburna

Foto de r.moreira32

ENTRE A SOMBRA E A NOITE

Entre a sombra e a noite há um submisso instante
de preparação.
Aberto espaço onde as aves não cantam,
imaculado, instantâneo refúgio.
Entre a sombra e a noite, único passo!

- E é serena e frágil a presença
dos nossos vultos passageiros
isolados na própria condição.

Onde nada se move, uma estrela suspensa.

E tão inutilmente despedaço do encanto,
e tão súbita me vem uma tristeza antiga,
que entre a sombra e a noite encontro o meu refúgio
- o intocável, único espaço.

Maria Alberta Menéres Melo e Castro
In Cântico de Barros

25/12/2008


Foto de miriam.faleiros

O JEQUITIBÁ
A Esmeraldo de Campos

Nobre Jequitiba de minha terra,
Filho da flora exuberante e forte,
Toda a beleza vegetal se encerra
Em teu imenso e majestoso porte.

Sentinela de amor, velando a serra,
A cidade natal, do Sul a Norte,
O Ribeirão que, entre verdores, erra,
- Maldito aquele que te ofenda ou corte!

Glória da terra verde e dadivosa,
Alma e sangue dos filhos de Amargosa
A cujo apelo tua voz responde.

De joelhos, e mãos postas na orvalhada,
Beijo-te o tronco de árvore sagrada
E elevo o olhar ao céu de tua fronde.

Rio, 7.9.1947

Sabino de Campos
In Natureza

Foto de Laís Souza - Acácia Amarela

A CANÇÃO DA CIGARRA

Todos os anos, em meu pé de acácia,
Vem zunir a cigarra, no verão
Feliz na voz, indômita na audácia
Do vôo ao sol que esplende na amplidão!

E no meio das flores amarelas
Expande, alegremente, de surpresa,
Todas as suas confidências belas,
Embevecida pela Natureza.

Outra chega, e mais outra.Dentro em breve,
O concerto agradável principia
Num diapasão evanescente e leve
Que depois se alcandora em melodia.

Com as asas translúcidas, e os olhos
De um tom vidroso e quase angelical,
Na acácia verde, com seus jaldes folhos,
A cigarra parece cristal.

Enleia sua música envolvente,
Em cuja escala predomina o dó...
Gosto de ouví-la mais quando estou doente
Porque o enfermo quase vive só...

O que me encanta é essa união divina,
Essa mútua e fraterna admiração :
Se uma cigarra alegra sua sina,
Outra vem ajudá-la na canção.

Cigarra, minha irmã, quando te fores,
Após chegar o pensativo outono,
A pobre acácia não terá mais flores
E eu ficarei sozinho no abandono...

Rio, 04.12.1952

Sabino de Campos
In Natureza

Foto de ce_barbato

NATAL

Natal. É noite silente,
Numa pobre manjedoura,
Maria, divinamente,
No ventre um Deus entesoura.

José murmura, almo e crente,
Uma prece. Do Alto, loura
Réstia de luz, docemente,
A face calma lhe doura...

Para reger o destino
Do mundo, nasce o Menino
Entre glórias na amplidão.

Os galos cantam nos prados
E seus clarins reiterados
Ecoam na solidão!

(Versos da meninice)
Cachoeira - Bahia

Sabino de Campos
In Natureza

Foto de Claudio Zeiger

ALMAS IRMÃS

Fêz-nos a sorte assim... Somos ambos iguais
Na penumbra da vida, e na tristeza imensa
Que foge do verdor florido dos rosais
E, nas almas azuis, se envolve e se condensa.

Em nossos corações dormiam temporais...
Não existe entre nós a menor diferença:
Temos, na solidão das cabeças glaciais,
Um cérebro que sonha... um cérebro que pensa...

E quando junto a ti, surpreendo a minha vida,
De teus olhos na luz do lago lento e langue,
- Qual uma triste flor, estiolada e pendida,

Eu tenho a sensação, que me mata e conforta,
De abrir meu coração, como um túmulo em sangue,
Para nele enterrar o teu amor de morta.

João Pessoa - Paraíba - 1933

Sabino de Campos
In Natureza

Foto de Flávio Cruvinel Brandão

TRANSFIGURAÇÃO

Em meu Tabor da mística existência,
Contrito, vejo que me transfiguro:
Mudou-se-me a feição da adolescência,
E meu Passado vai ficando escuro...

Da mocidade vou sentindo a ausência.
E todo encanto na ilusão procuro:
Não sou carne, nem sangue, sou essência,
Circundando num halo meu futuro.

De meu Presente jorram claridades,
Como orvalho entre névoas nas alfombras
Dos silêncios noturnos das saudades...

E , no ciclo dos versos que compus,
Vão escorrendo de meu corpo as sombras,
E entre meus dedos escorrendo a luz...

Sabino de Campos
In Natureza

Foto de Flávio Cruvinel Brandão

PARA FAZER O RETRATO DE UM PÁSSARO

Pintar primeiro uma gaiola
com uma porta aberta
pintar em seguida
qualquer coisa de agradável
qualquer coisa de simples
qualquer coisa de belo
qualquer coisa de útil
para o pássaro
colocar depois a tela contra uma árvore
em um jardim
em um bosque
ou em uma floresta
se esconder atrás da árvore
sem dizer nada
sem se mover...
Às vezes o passarinho chega de-pressa
mas pode tardar muito
antes de se decidir
Não se desanimar
esperar
esperar se necessário muito tempo
a rapidez ou a lentidão da chegada
do pássaro que não tem nenhuma responsabilidade
pelo êxito da pintura.
Quando o pássaro chega
se chega
Observar o mais profundo silêncio
esperar que o pássaro entre na gaiola
e quando ele tiver entrado
fechar levemente a porteira com o pincel
então
apagar um a um todos os ponteiros
tendo o cuidado de não tocar em nenhuma das penas do pássaro
fazer em seguida a pintura da árvore
escolhendo o mais belo de seus ramos
para o pássaro
pintar também a folharia virente e a frescura do ar
a poeira do sol
e o ruído dos bichos do mato no calor do verão
e depois esperar que o pássaro se resolva a desferir o gorjeio
Se o passarinho não canta
é mau sinal
aviso de que o quadro é ruim
porém se ele canta é bom sinal
prova de que podeis assinar
então arrancais muito delicadamente
uma das penas do pássaro
e escreveis vosso nome num canto da pintura.

Jacques Prévert
Tradução de Sabino de Campos

Foto de Adonis Guerra



Sob a abóboda, uma tonalidade âmbar,
que entra quieta pelos vitrais.
Um leve aroma de incenso,
que os dias de hoje já nem usam mais.
De joelhos, os fiés contritos;
em pé, os devotos aflitos;
sentados, os mais conformados.
Um grupo discreto murmura confiante
uma novena:
a esperança é grande,
a sorte é pequena,
só Deus que dá jeito.
Ave Maria, cabeça baixa, mão no peito,
talvez um dia.
A viúva recente, a moça carente,
o desempregado;
a mãe alarmada, a sogra injuriada,
o velho doente;
uma adolescente que quer namorado.
No ínício da esquerda, a imagem parece
sensibilizada.
Também, tanta prece...
Olhos comovidos, gestos suplicante,
aos pés uma rosa e a serpente pisada.
Lá na frente, um cristo sofrido pede penitência,
que o pecado é insistente,
o corpo é atrevido
e a gente escorrega por inconseqüência.
Depois do conforto,
o frasco de água-benta na porta da saída.
Se houver recaída, só fé que sustenta.

Flora Figueiredo
In Chão de Vento