28/12/2010

CANTO...

















Enquanto houver um rio, hei de cantar
Lonjuras de outros tempos, esquecidas.
Enquanto houver gaivotas rumo ao mar,
Cantarei lembranças de outras vidas.

Enquanto houver um rio, hei de sonhar
Venturas de outros tempos, proibidas.
Enquanto houver mordaças de matar,
Cantarei esperanças coloridas.

Enquanto o rio correr e eu cantar
Vontades, ilusões, destinos, fados,
Talvez um dia, o meu canto chegue ao mar

Se não, que espalhem as gaivotas pelo ar
Em pios, em voos, em desenhos ousados
Tudo quanto meu canto nunca ousou cantar.

Helena Domingues
In Shoshanano Céu e na Terra
RetIrado do Blooger Poesia Portuguesa
Foto de Victor Viana

FELIZ 2011...

PASSAGEM DO ANO


















O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventre te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura,promoção,glória,doce morte com
[sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo.Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles...e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está emtupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa,mortal,sub-reptícia.

Carlos Drummond de Andrade
In A Rosa do Povo
Carlos Roberto Lobo Mendes

INTERPRETAÇÃO DE DEZEMBRO
























É talvez o menino
suspenso na memória.
Duas velas acesas
no fundo do quarto.
E o rosto judaico
na estampa, talvez.

O cheiro do fogão
vário a cada panela.
São pés caminhando
na neve, no sertão
ou na imaginação.

A boneca partida
antes de brincada,
também uma roda
rodando no jardim,
e o trem de ferro
passado sobre mim
tão leve: não me esmaga,
antes me recorda.

É a carta escrita
com letras difíceis,
posta no correio
sem selos e censura.
A janela aberta
onde se debruçam
olhos caminhantes,
olhos que te pedem
e não sabes dar.

O velho dormindo
na cadeira imprópria.
O jornal rasgado.
O cão farejando.
A barba andando.
O vento soprando.
E o relógio inerte.

O cântico de missa
mais  do que abafado,
numa rua branca
o vestido branco
revoando ao frio

O doce escondido,
o livro proibido,
o banho frustrado,
o sonho do baile
sobre chão de água
ou aquela viagem
ao sem-fim do tempo
lá onde não chega
a lei dos mais velhos.

É o isolamento
entre às castanhas,
a zona de pasmo
na bola de som,
a mancha de vinho
na toalha bêbeda,
desgosto de quinhentas
bocas engolindo
falsos caramelos
ainda orvalhados
do pranto das ruas.

A cabana oca
na terra sem música.
O silêncio interessado
no país das formigas.
Sono de lagartos
que não ouvem  o sino.
Conversa de peixes
sobre coisas líquidas.
São casos de aranha
em luta com mosquitos.
Manchas na madeira
cortada e apodrecida.

Usura da pedra
em lento solilóquio.
A mina de mica
e esse caramujo.
A noite natural
e não encantada.
Algo irredutível
ao sopro das lendas
mas incorporado
ao coração do mito.

É o menino em nós
ou fora de nós
recolhendo o mito.

Carlos Drummond de Andrade
In A Rosa do Povo
tela de Lavinia Hamer

27/12/2010

NAS RÉSTIAS DA EXISTÊNCIA


















I

A evocação do homem
é cavar a pedra,
é reter do grito
os seus grifos de luz.

II

A evocação do homem
não é um conjunto de livros
que se abre e se fecha
folha
a
folha
e depois se escreve à giz
a conclusão da sua loucura.

III

A evocação do homem
é fazer do quintal da sua infância
a flauta mágica
para o majestoso e contraditório
espetáculo da vida.

IV

A evocação do homem
não é improvisar-lhe um palco,
cortar-lhe as forças
e tornar-lhe solidão.

V

A evocação do homem
é porta aberta
às possibilidades,

à canção de amor ainda possível.

Eulália Maria Radtke
In O Sermão das Sete Palavras
foto de Dragan*

A CANÇÃO DO AMOR AINDA POSSÍVEL

















I

Nas réstias da existência
ainda creio no amor
- ainda creio na canção -
não como um peixe fuzilado,
mas como um velho pescador
anoitecido em sua rede
após conhecer os mares de  viver.

Creio na canção ainda e ainda,
- sem tempo de chegar e partir -
não como um pássaro desatinado,
mas como um velho pastor
após conhecer seu rebalho na terra.

II

Oh mar,
eu te ouço
e a pulsação das tuas águas
é sangue em minhas veias.
Ah rebanhos,
todos as arquiteturas de sonhos
pousam em meu cajado,

III

É sempre a mesma voragem
na coreografia das águas.
É sempre o mesmo agasalho
nas tecituras das ovelhas.
É sempre a minha escuna
devorando a carne.

É sempre os meus colibris
sugando as flores dos campos.

IV

São quatro cavalos de fogo
esculpidos na sonoridade das palavras.

São quatro colóquios
que um dia eu trouxe
retidos nos meus gestos.

E são tantas as vozes
que me chamam
para contar-te
e cantar-te
as metáforas do amor.

Eulália Maria  Radtke
In O Sermão  das Sete Palavras
foto de Flávio Cruvinel Brandão 

TRÊS ELEGIAS EM TOM MENOR
















I

Não é saudade, mas pálido fulgor
- lua no céu da tarde -
tua lembrança.

É uma música.
Ou menos:
Um eco de farândola, na estrada,
chuvisco sobre os lombos do alto-mar.

Não é saudade.
Não há saudade assim:
tristeza, ao longe,
e não mais te querer junto de mim.

II

DESAMOR

Porque voltou o verão esta manhã,
me acheguei, por atalhos antigos,
à falésia da praia
- nossa praia.
Estranho, um coração que emudeceu!
Isto reencontrei:
rochas absortas,
areal ocioso,
o horizontre apartando céu e mar,
as escamas do sol cintilando nas vagas...

E um forasteiro em minhas vestes, à sombra
dos tamarindos e dos tempos vencidos.

III

POSLÚDIO

Não a raiz, e sim a flor
que balança na aragem, transitória.

Não palavras.Música de uma voz, apenas.
vibrando pelos cantos da memória.

Não o seixo quebrando a paz do açude:
rodas dágua, somente, se espalhando.

Uma lembrança plácida, imprecisa:
não mais, tu, no meu pulso, martelando.

Luis Soler
In Um Olhar.Dois Tempos
foto de PatrickSmithPhotography

O TEMPO VIVIDO
















Somamos anos:
medida extravagante.

Anos
breves demais, alguns;
outros que nunca acabam.

Azuis, vermelhos.
Dourados, porventura.
Também cinzentos.

Anos que desmancharam-se, parece.
Outros sempre a rufar nos tambores do peito.
Alguns - conheço-os bem - nefastos
vingativos.

Inútil,
contar os anos.

Para sentir, de vez,
o tempo já vivido
contem, melhor, seus dias
- um sorriso, depois -
em meros dias.

Luis Soler
In Um Olhar.Dois Tempos
foto de nelson fudo

26/12/2010

SONETO 20


  














Unidos como o sumo e a uva ao ramo
o caminho da areia ao vento brusco,
como no espelho a imagem que derramo
e o nacarado à concha do molusco.

Unida assim a rapidez ao gamo,
a distorção do prisma ao lusco-fusco,
a escala vocativa quando chamo
o sonho no impossível que rebusco.

Como semente à espiga, como a história
crescida chama em resignadas tochas,
corcel de estrias cavalgando rochas,

um dia foste mar, eu fui salina,
por seres homem eu nasci menina,
enquanto fores luz, serei memória.

Maria José Giglio
in Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou
J.G . de Araujo Jorge - 1a ed. 1963
foto de  Eduardo Amorim

O TEMPO

















DE MUITOS dias se faz o dia, uma hora
tem minutos atrasados que chegaram e o dia
forma-se com estranhos esquecimentos, metais,
cristais, roupa que seguiu nos recantos,
predições, mensagens que não chegaram nunca.

O dia é um tanque num bosque futuro,
esperando, povoando-se de folhas, de advertências,
e de sons opacos que entraram na água
como pedras celestes.
E margem
ficam pegadas douradas da raposa verpertina
que como um pequeno rei rápido quer a guerra:
o dia acumula em sua luz fibras e murmúrios:
tudo surge de repente como uma vestimenta
que é nossa, é o fulgor acumulado
que aguardava e que morre por ordem da noite
derramando-se na sombra.

Pablo Neruda
In Jardim de Inverno
foto de Eduardo Amorim

COM QUEVEDO NA PRIMAVERA

















TUDO floresceu
nos campos, macieiras,
azuis titubeantes,capoeiras amarelas,
no meio da erva verde vivem as papoulas,
o céu inextinguível, e o ar novo
de cada dia, num tácito fulgor,
presente de uma extensa primavera.
Só não há primavera em meu recinto.
Enfermidades, beijos descompostos,
como heras de igrejas que pegaram
nas janelas negras da minha vida,
só o amor não basta, nem o selvagem
e extenso perfume da primavera.

E para ti que são bem neste agora
a desenfreada luz, o desenvolver
floral de uma evidência, o canto verde
destas verdes folhas, mais a presença
do firmamento com sua copa fresca?
Primavera exterior, não me atormentes,
desatando em meus braços vinho e neve,
corola e ramo roto de pesares,
dá-me por hoje o sonho dessas folhas
noturnas, a noite onde vão se encontrar
os mortos, os metais, tantas raízes,
e tantas primaveras extinguidas
que despertam em cada primavera.

Pablo Neruda
In Jardim de Inverno
foto de Eduardo Amorim

 

DONA DAS ÁGUAS






















Quando o Mundo cantava o amanhecer
Dálias acordavam ao Sol.
- Eram folhas
brincando ao compasso da brisa
Almas
exultando ao sopro da presença:

Era IEMANJÁ
surgindo das águas.

A natureza entoava salmos enquanto ondas lavavam
conchas mortas
Por mais que bramissem
ninguém escutava outra expressão
que não fosse amor
silêncio desfolhando cores.

Era o símbolo calando o rumor das águas
a Fé ornamentando caminhos
para a festa do reencontro:

Era IEMANJÁ
divinizando o Mar!

Lia Corrêa
In Uma Rosa no Tempo
foto  de beto.guilger

EU FALAREI ÀS ROSAS




















Falarei do amor à quietude das rosas
falarei à sua altivez
à sua graça
descansada nos ramos

Cantarei poemas
à presença de suas formas
em rituais de noivados e renascimentos

Eu falarei da leveza de seus gestos
evocando a ternura da Mulher
a carícia do Amante

Direi da música das águas
de mãos a desatar grinaldas
de bocas
adivinhando beijos...

Falarei
também
de uma Força Criadora
a modelar
a dirigir todas as coisas.

A hora silenciosa do crepúsculo
eu falarei do amor
à quietude das rosas!

Lia Corrêa
In Uma Rosa no Tempo
foto de zachstern no Flickr

25/12/2010

PICTURAL




Além da moldura da janela
a vida nua:
maduras sementes de romã
expostas ao sol de setembro.

Para dentro da moldura
subjaz na mudez do cabine
o casaco vazio
sem gestos.
O guarda-chuva inútil
colhe florinhas miúdas
de uma antiga tela de Monet.

Dizem das águas que virão em breve
inundar o róseo
o translúcido ventre
da romã pendente.
Oscilante
vulvar e tímida.

A romãzeira frágil
- testemunha ocular do óbvio -
revela direitos e avessos
de presença e ausências.
Outonos.Primaveras.
Tons e sobretons.
Poema traçado em finos gestos.
Tela composta em palavras:
pictural.

Maria Lucia Nascimento Capozzi
In A Literatura Possível
tela de Claude Monet

24/12/2010

TUDO É DEUS



















Na gota de orvalho,
No encanto da mata,
Na ave que canta,
Na chuva que cai,
No rio que murmura,
Eu sinto ternura,
E exclamo contente
- É obra do Pai!

No vento que sopra,
No raio que risca
O espaço grandioso,
Trazendo o trovão;
Na criança que chora,
No pobre que implora,
Eu noto e aprendo
Sublime lição.

Nos frutos que a terra
Ao homem oferece,
Na bela cigarra
Feliz a cantar,
Na mãe que embala
O filho querido,
Eu sinto encantos,
Belezas sem par.

No manto azulado
De estrelas bordado,
No sol que ilumina
A crentes e ateus,
No mar poderoso
As praias beijando,
Eu sinto a presença
E a força de Deus...

Clóvis Brunetti
In Sonhos e Realidade
foto de  drlilley no Flickr

23/12/2010








Aproveitando a linda mensagem do poema de Ivanise , desejo a você e sua família um FELIZ NATAL.
tela de Linda Benton.

TEMPO DE NATAL






















Apesar dos pesares,
é um tempo diferente
e a gente sente
vibrações que dispersas no ar,
nos fazem recordar
a estrela guia
planger de sino
e menino dos cabelos de ouro
e olhar divino
da cor do céu.
Riso de criança
e a esperança de Papai Noel.

O mundo em prece
a alma enternece
e renova a fé
ao sentir a presença
do Irmão de Nazaré.
Dá uma vontade incontida
de rever amigos,
perdoar quem nos magoa.
Sentir como a vida é boa
ao distribuir sorrisos,
bons desejos, bons fluídos
e dar amor, muito amor,
não somente aqui na Terra
e entre as estrelas e planetas,
num carinho sideral,
a amar o universo
Pois outra vez é NATAL.

Ivanise Jácome Pântano
In A Literatura Possível
tela The Nativity Northern Italian School

DEZEMBRO























Pesa no céu da tarde esta alegria
das nuvens de dezembro. O' silêncio de quando
as nuvens ressuscitam os gestos fabulosos
outra vez revelando a frágil eternidade
que se esfuma em translúcidas imagens.

Crescem no céu as asas que se entregam
aos rumos de dezembro. No ritmo dos rumos
fica o sinal de partida, a inquieta ventura
de explorar finalmente a solidão do azul.

De seu breve mistério a flor soluça
pela noite de estrelas afanosas
pelo amor noturno e os desejos inúteis
de dezembro a dezembro.

H. Dobal
In O Tempo Inconsequente
tela de Vincent Van Gogh

22/12/2010

ENAMORADA DA NOITE



















Gosto da Noite
com seu vulto longo
respingando nanquin nos cabelos do Vento

Da noite de almas agitadas
trazendo no seu perfil
anseios de mil pecados...

Gosto da Noite
exausta de lirismo
de sombras indecisas
de multidões vestindo desejo...

Gosto da Noite
derramada em adeuses
a insistir nas promessas
que a Vida não cumpriu...

Gosto da Noite
Noite
Da noite vestindo Noite.

Lia Corrêa
In Uma Hora no Tempo
tela de Vincent Van Gogh

DO LÍRICO AO SENSUAL

























Olhar
recolhendo lilás
na tarde.
Pensamento
escorrendo desejo
se fazendo pássaro.

Alma
a sonhar o instante branco.
Corpo
buscando o sensual
em madrugadas mornas.

Serei onda
relva
rede
no seu cansaço.

Os dias
serão
entardecer em nós.

Lia Corrêa
In Uma Rosa no Tempo
tela de Lesley Birch

CANTO DE ANGÚSTIA
























A voz da noite emudeceu
para que as estrelas se beijassem em silêncio

Autêntica
semeei ternura - olhar e gesto -
bebi solidão
brindei ao abismo

Minha alma
continuou na busca
a chorar
o sem tamanho da ausência!

Lia Corrêa
In Uma Rosa no Tempo
tela de Vincent Van Gogh

DÁDIVA























Quando a noite se der em ternura
serei desenhada por suas mãos...
Todas as formas devem silenciar
para que o ruído das emoções nos envolva

Amanheceremos
redescobrindo um mundo que não chore
que cultive flores em feição de riso.

- Um Mundo
escrito para dois!

Lia Corrêa
In Uma Rosa no Tempo
tela de Gustav Klimt

DA SAUDADE
























Flor - cristal
a derramar-se dentro das horas
a dar-se em pólen
nos momentos brancos do existir

Recados de muito longe
acordando gestos dormidos!

Espera lenta
com sinal de regresso
Pedaço do sol
abrasando os minutos
Mulher-criança
brincando nos muros do Tempo

no rastro do Tempo
no tempo do Tempo

Lia Corrêa
In Uma Rosa no Tempo
tela de Gustav Klimt

ACENDEM-SE CATEDRAIS























... e o sedento busca o cântaro

Acendem-se catedrais
porque a fé renasce despejando sons
fecundando ideias

Presença entrelaça mãos
num ritual de cânticos milenares

Reencontram-se os perdidos no século!

Acendem-se catedrais
porque a poesia vence barreiras
restaura imagens
limitando espaço

O sedento busca o cântaro
e habita a alma do poeta.

Lia Corrêa
In Uma Rosa no Tempo
tela de  Sir Edward Burne-Jones

OS DIAS DE VERÃO



Os dias de verão vastos como um reino
Cintilantes de areia e maré lisa
Os quartos apuram seu fresco de penumbra
Irmão do lírio e da concha é nosso corpo

Tempo é de repouso e festa
O instante é completo como um fruto
Irmão do universo é nosso corpo

O destino torna-se próximo e legível
Enquanto no terraço fitamos o alto enigma familiar dos astros
Que em sua imóvel mobilidade nos conduzem

Como se em tudo aflorasse eternidade

Justa é a forma do nosso corpo

 Sophia de Mello Breyner Andresen
 In Casario do Ginjal
tela de  Carson

O SONHO ADIADO...

















O poeta continua a viagem
Pelo cais dos sonhos...

Mesmo sem a luz do Farol,
Sem a frescura da água
Das bicas do Chafariz,
Não desiste de sonhar...

Percorre o Ginjal
De mão dada com a serenidade
Deixa-se empurrar pelo vento
Naquele carreiro da liberdade

Apesar das paredes cinzentas
Marcadas pelo abandono
Acredita num futuro azul
Inspirado na beleza do Tejo
E no encanto das suas margens

O poeta continua a viagem
Pelo cais dos sonhos...
E promete,
Nunca desistir de sonhar...


 Luís Alves Milheiro
 In Blogger Casario do Ginjal
 tela de Carol Rowan

21/12/2010

O SILÊNCIO



O silêncio é crístico.
É o emblema da luz.
A conexão com a fonte.
Tome-o por filho
e ouça a sua respiração.
Ouvirás o inspirar da prece
e o expirar da paz.

Maria Lúcia Siqueira
In Asas ao Anoitecer

METAMORFOSE



A noite de outrora silencia.
Pelas mãos do destino se cala
até que surja um novo dia
no seu coração, para um regresso  à fala.

Podem ocorrer seres desnudos
vagos tristes seres de segredos,
carregando o peso do mundo
em seu fardo de medo.

À noite não importará esta brusca espera
até que passem as trevas sobre a matéria
quando a Divindade retém o julgamento.

A metamorfose da própria vida
transforma a dor de uma  ferida
no mais sincero dos depoimentos

Maria Lúcia Siqueira
In Asas ao Anoitecer

QUANDO




e que por fim vos recupere
a vasta e santa sinfonia
de velhas mães: a Macabéia,
Ana, Isabel,Raquel e Lia. 
Gabriela Mistral

Quando, nesta hora do dia,
pouso a caneta, esqueço o verso,
minha alma é calmaria
paz profunda de um berço.

Quando o pássaro canta
no beiral da minha messe,
minha vida que acalentas
cerra os olhos...adormece.

Quando o gongo soa
e o meu corpo já não sinto
minha alma sai e voa
te buscando no infinito.

Maria Lúcia Siqueira
In Asas ao Anoitecer
arte The Evening Star, Sir Edward Burne-Jones
 

HUMILDADE
























Buscando imagem distante
anoiteço
na intimidade da poesia...

Quando ninhos forem dormidos
escutarei passos apressados
e quando a lua se recolher
sonolenta
serei sozinha
entre pensamentos indefinidos...
Nem a saudade
acenderá a Lâmpada da Libertação
que o destino fez algema...

Humildemente
fecharei as rosas do sonho
na concha de minhas mãos...

Lia Correa
In Hora Branca
foto de Maha RT

DIVAGANDO


















Pensar na velhice
que o inverno dos dias
nos traz,
é viver um amanhã
na incerteza da paz.

É esquecer o presente
no agora...

Amando o que tenho
bem junto às mãos,
sentir e viver
a beleza da hora!

Levarei recordações,
pesadas bagagens
de vivências

e pensarei,
ao escurecer das horas
quando as tardes já mortas
me quiserem ouvir:
- que eu amei com ardor
nas alegrias e desenganos
sorrindo sempre ao amor:
...flor fenecendo
andorinha emigrando
estrela amanhecendo!


Alvina Tzovenos
In Sonhos e Vivências
foto de  chinch gryniewicz

VIOLINOS EM FESTA




















Há uma quietude no ar,
há rouxinóis perdidos
e a carícia que é sentida...

Que doce melancolia!

Há emoções,
violinos em magia,

É poesia
plena de paixão!

Alvina Tzovenos
In Sonhos e Vivências
tela  de Arthur Hacker

ENTRE O CÉU E O MAR


















Entre o Céu e o Mar
há um infinito de esperas,
conflito de incertezas,
interrogação de cores,
tristeza no olhar,
prenúncio de paisagens.

Alvina Tzovenos
In Sonhos e Vivências
foto de  fabry

MADRUGADA


















E de dentro dela
abraçada
ao silêncio das horas
eu devaneio
de alma exaltada!

Ouço vozes
entre luzes coloridas
...há paisagens vigilantes
nessas madrugadas esquecidas!

Sinto que sou flor
sob as carícias do orvalho:
ele surpreendeu-me viçosa
...são seus
todos os meus beijos de amor!

Vejo
melancolia saudosa
a cantarolar seus prantos...
A aurora aconteceu...
é toda voluptuosa!

Dá-me a mão,
ó madrugada!

Agasalha-me nos teus encantos!

Alvina Tzovenos
In Sonhos e Vivências
foto de  Simon Burgess

20/12/2010

***




















Natal se aproxima.
Nos rostinhos infantis
sonho de presentes.

Delores Pires — Haicais Natalinos
“in” O Livro dos Haicais

PROFECIA
























Ontem
me fiz emoção
nasceu uma paisagem diferente.

Hoje
fiquei saudade
e a presença de um nome
pairou nos meus lábios...

Amanhã
serei angústia
e a saudade
ficará mais saudade
silêncio
languidez
cansaço...

De ontem
hoje
e amanhã
restarão comigo
algumas cartas desbotadas
pedaços de sonho
e um nome
entre meus lábios
escondido

Lia Corrêa
In Hora Branca
foto de  elizabethdonoghue

CONVICÇÃO


















Eu sei que tu virás!

Juntos
apanharemos estrelas
para o céu interior
e seguiremos
machucando trevos
sob o calor de nossos afagos...

Eu sei que tu virás!

No perfume das manhãs
mergulharemos
e caminharemos
absorvendo seiva de raízes...

Eu me engrandeço
e abraço a Vida
O mundo
a Tua ausência
porque...

Sei que tu virás!

Lia Corrêa
In Hora Branca
foto de tonayo no Flickr

19/12/2010

EPIGRAMA 2



















És precária e veloz, Felicidade.
Custa a vir, e quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.

Felicidade, és coisa estranha e dolorosa.
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
porque um dia se vê que as horas passam,
e um tempo, despovoado e profundo, persiste.

Cecília Meireles
In Viagem
foto de Cap001 no Flickr

LEMBRANÇA RURAL


                                           
Chão verde e mole. Cheiros de selva. Babas de lodo.
A encosta barrenta aceita o frio, toda nua.
Carros de bois, falas ao vento, braços, foices.
Os passarinhos bebem do céu pingos de chuva.

Casebres caindo, na erma tarde. Nem existem
na história do mundo. Sentam-se à porta as mães descalças.
É tão profundo, o campo, que ninguém chega a ver que é triste.
A roupa da noite esconde tudo, quando passa...

Flores molhadas. Última abelha. Nuvens gordas.
Vestidos vermelhos, muito longe, dançam nas cercas.
Cigarra escondida, ensaiando na sombra rumores de bronze.
Debaixo da ponte, a água suspira, presa...

Vontade de ficar neste sossego toda a vida:
bom para ver de frente os olhos turvos das palavras,
para andar à toa, falando sozinha,
enquanto as formigas caminham nas árvores...

Cecília Meireles
In Vaga Música


PONTE






















Frágil ponte:
arco-íris, teia
de aranha,gaze
de água, espuma,
nuvem, luar.
Quase nada:
quase
a morte.

Por ela passeia,
passeia,
sem esperança nenhuma,
meu desejo de te amar.

Céu que miro?
- alta neblina.
Longo horizonte
- mas só de mar.

E esta ponte
que se arqueia
como um suspiro
- tênue renda cristalina -
será possível que transporte
a algum lugar?

Por ela passeia,
passeia
meu desejo de te amar.

Em franjas de areia,
chegada do fundo
lânguido do mundo,
às vezes, uma sereia
vem cantar.
E em seu canto te nomeia.

Por isso, a ponte se alteia,
e para longe se lança,
nessa frágil teia
- invisível, fina
renda cristalina
que a morte balança,
torna a balançar...

(Por ela passeia
meu desejo de te amar.)

Cecília Meireles
In Vaga Música
tela de Claude Monet, 1899

EMBALO
























Adormeço em ti minha vida,
-  flor de sombra e de solidão  -
da terra aos céus oferecida
para alguma constelação.

Não pergunto mais o motivo,
não pergunto mais a razão
de viver no mundo em que vivo,
pelas coisas que morrerão

Adormeço  em ti minha vida,
imóvel na noite, e sem voz.
A lua, em meu peito perdida,
vê que tudo em mim somos nós.

Nós! - E no entanto eu sei que estão
brotando pela noite lisa
as lágrimas de uma canção
pelo que não se realiza.

Cecília Meireles
In Vaga Musica
foto de claudio.marcio2

TARDIO CANTO



















Canta o meu nome agreste,
cheio de espinhos
o nome que me deste,
quando andei nos teus caminhos.

Canta esse nome amargo,
hoje perdido,
no tempo largo,
sem mais nenhum sentido.

Como esperei teu canto,
noites e dias!
Necessitava tanto!
Tu não podias...

Ouço o teu grito ardente,
cigarra do deserto!
Mas já não sou mais gente...
Não ando mais tão perto...

Cecília Meireles
In Vaga Música
foto de  claudio.marcio2

GAITA DE LATA



















Se o amor ainda medrasse,
aqui ficava contigo,
pois gosto da tua face,

desse teu riso de fonte,
e do teu olhar antigo
de estrela sem horizonte.

Como, porém, já não medra,
cada um com a sorte sua!

(Não nascem lírios de lua
pelos corações de pedra...)

Cecília Meireles
In Vaga Música
foto de claudio.marcio2

ARTE POÉTICA


















Entre sombra e espaço, entre guarnições e donzelas
dotado de coração singular e sonhos funestos,
precipitadamente pálido, emudecido de cara
e com luto de viúvo furioso por todo dia de vida,
ai, para cada água invisível que bebo sonolentamente
e de todo som que acolho tremendo,
tenha a mesma sede ausente e a mesma febre fria,
um ouvido que nasce, uma angústia indireta,
como se chegassem ladrões ou fantasmas,
e numa casca de extensão fixa e profunda,
como um camareiro humilhado, como um sino um pouco rouco,
como um espelho velho, como um odor de casa abandonada
na qual os moradores chegam à noite perdidamente embriagados,
e há um cheiro de roupa atirada ao chão, e uma ausência de flores
-  possivelmente de outro modo ainda menos melancólico  -
porém, na verdade, de súbito , o vento que açoita o meu peito,
as noites de substâncias infinita caídas no meu quarto,
o ruído de um dia que arde com sacrifício
me pedem o profético que existe em mim, com melancolia,
e uma pancada de objetos que chamam sem ser respondidos
existe, em um movimento sem trégua, e um nome confuso.

Pablo Neruda
In Residência na Terra I
foto de PatrickSmithPhotography

TIRANO


















Oh dama sem coração, filha do céu,
auxilia-me nesta solitária hora
com a tua direta indiferença de arma
e o teu frio sentido do esquecimento.

Um tempo total como um oceano,
uma ferida confusa como um novo ser
abarcam a tenaz raiz de minh'alma
mordendo o centro da minha segurança.

Que espesso pulsar se arqueia no meu coração
qual uma onda feita de todas as ondas,
e a minha desesperada cabeça se ergue
num esforço de salto e de morte.

Há algo inimigo a tremer na minha certeza,
a crescer na mesma origem das lágrimas
como uma planta dilacerada e dura
feita de encadeadas folhas amargas.

Pablo Neruda
In Residência na Terra I
foto de PatrickSmithPhotography

LAMENTO LENTO

















Na noite do coração
a gota do teu nome lento
em silêncio circula e cai
e rompe e desenrola a sua água.

Algo deseja o seu leve dano
e a sua estima infinita e curta,
como o passo dum ser perdido
de repente ouvido.

De repente, de repente escutado
e repartido no coração
com triste insistência e acréscimo
como um sono frio de outono.

A espessa roda da terra
seu aro úmido de olvido
faz rodar, cortando
o tempo em metades inacessíveis.

Suas copas duras cobrem a tua alma
derramada na terra fria
com as pobres chispas azuis
a voar na voz da chuva.

Pablo Neruda
In Residência na Terra I
foto de Tanya Puntti

16/12/2010

COM SÍLABAS DE SILÊNCIO

























poderia dizer um poema todos os dias
ou dizer o dia todo num poema mas estou ocupada
estou ocupada com sílabas de silêncio
com um céu claro sem rimas
há em mim um mito maior que ruínas
o teu coração a face da tua mão ocupam-me
a palavra inteira que vê e viaja ocupa-me
é um privilégio voltar a este lugar
ao cheiro dos marinheiros ao branco
ao tanto sol ao ar dos baloiços
estou ocupada tenho a memória na pele bem funda
o sal a escaldar na noite numa irmandade fecunda

Maria Gomes
tela de Albert Williams

QUE VENHAM ROSAS...





















Que venham rosas descer pelo chaminé
e outros sinais avancem em direcção ao sonho.
que o mar vagueie terno pela terra
sem cadaveres
pernoite pelas palavras
saliente em hélice o hálito do amor
e uma lua cresça no teu corpo
na serenidade das coisas que te acordam
como uma flor
na verdade que outros sois inventem.

Maria Gomes
In A Romã de Vidro
tela de Albert Williams

NATAL























Quando o  Natal acontecer,
na fornalha jogaremos todo nosso desamor.
E exultantes nos despiremos de toda vã soberba.

De azul e branco vestiremos todos aqueles irmãos
que ainda não aprendemos a conhecer amar e perdoar.

Irmanados no mesmo ágape.
Beberemos vinho de nossas videiras.
Comeremos carne de nossas vitelas.
Maçãs de nossas macieiras.Pão de nossas searas.

Quando o Natal brilhar,
queremos sonhar e sonhar:
Irmãos do oriente e do ocidente
antevendo o milagre da gazela e do leão
bebendo na mesma fonte. O gavião e o sabiá,
a pomba e o corvo pousando na mesma casuarina.

Quando o Natal chegar,
recapitularemos o Sermão da Montanha.
E congregados no mesmo holocausto
partilharemos a dor das chibatadas.

À mesma mesa sentaremos todos.
Todos vestidos de azul e branco
para partir o pão ázimo de nossos trigais.
Para retribuir o vinho de nossas vinhas.
A lã de nossas ovelhas. O azeite de nossos olivais.
O arroz de nossos arrozais. O mel de nossas colméias.

Quando dezembro acontecer,
elevaremos salmos pelos condenados à geena.
E litanias entoaremos pela conciliação entre
lobos e cordeiros. Entre abutres e andorinhas.
Pela extinção do vulcão que ruge sobre nossa angústia.

Nesta noite, a última talvez,
a única oferenda pura e duradoura,
o único presente definitivo que um dará ao outro,
será o amplexo da paz e o ósculo do amor e do perdão.

Luíz Carlos Salamí
In Girassóis Vermelhos
tela de Gillian Lawson

CISÃO DAS ASAS
























O fio
no poste:
arapuca
de passarinhos.

No voo
da infância.
a pipa
mergulha
e dança
na mão dos meninos.

Pandorgas
partidas.

Rita de Cássia Alves
In Pele Submersa
foto de Mike Hewson

BORDADOS DO RELÁMPAGO NO CÉU




















É tão breve tudo, a estrela risca o céu de escuro
 a escuro e findou-se a vida
Adélia Prado

A correnteza
traga os raios
que as nuvem atritaram:
vozes aquáticas.

Finda a claridade,
o escuro toma posse
das cercanias do céu.
No pasto das estrelas,
enamorados a acasalam
a metade dos astros.

Os corpos
são cheios
na lua minguante,
desejosos
do quarto que cresce.

Bebem
o hiato da seiva:

línguas
bordam o amor
no véu da boca.

Rita de Cássia Alves
In Pele Submersa
foto de Philip Schexnayder